What’s Going On. Ainda mais contemporâneo


50 anos depois, álbum icônico de Marvin Gaye continua tão relevante em 2021 quanto foi na época dos conflitos que transformaram a sociedade mundial

Troque a Guerra do Vietnã e os assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King no final dos 1960’s pelo caso George Floyd há pouco tempo. O tema é o mesmo. Brutalidade policial e desigualdade racial. Alguém que tivesse sido congelado ou entrado em coma em 1969 e acordasse agora na segunda década do século 21 pode acordar e achar que está sob o mesmo cenário.

Troque o Jimi Hendrix Experience e Sly & Family Stone por Travis Scott, Lil Wayne e Kendrick Lamar. A música é diferente. E para entender essa diferença é preciso lembrar de Marvin Gaye. Mais que isso, seu álbum What’s Going On, realizado em 1971. Há meio século neste ano da graça de 2021.

Marvin Gaye realizou What’s Going On sobre as questões que todos conhecemos. Mal imaginava ele que, 36 anos após sua morte, o disco ainda aparentasse ter sido escrito ontem, por algum rapper ensandecido.

Marvin Pentz Gay Junior nasceu em Washington, DC, capital dos Estados Unidos, em 1939, no bairro segregado de Deanwood. Uma espécie de “zona de segurança” para negros. Segundo de quatro filhos de um pastor, trabalhou em subempregos de toda sorte, muito especialmente como carregador de tacos de golfe. Em um ambiente que misturava judaísmo fundamentalista e o fundamentalismo pentecostal, Marvin cresceu cantando no coral da igreja. Nada muito diferente da história de nove a cada dez expoentes do soul, r&b, blues, jazz e funk norte-americanos. Multi-instrumentista, começou profissionalmente como baterista da DC Tones, uma banda de doo-wop. Foi convocado para o exército, fingiu demência e conseguiu sair. Em 1957 adentrou The Marquees, banda que acompanhava Bo Diddley. Depois integrou The Moonglows, que emplacou um compacto pela Chess Records, de Chicago.

Já afiado e aprendendo tudo que viria a utilizar em futuras produções, foi apresentado ao presidente da Motown Records, Berry Gordy. Ali as coisas começaram a mudar. Trabalhou como baterista de estúdio para diversos álbuns de vários grupos. O maior destaque foi The Marvelettes e um certo Little Stevie Wonder. Acrescentou um “e” a seu nome Gay, por razões óbvias, mas também para diferenciar-se de seu pai. Era 1961 quando resolveu cantar e empreender álbum próprio. Demorou a convencer o chefe Gordy, devido a sua tradicional indisciplina e estilo próprio de realizar dentro do estúdio.

Gravou alguns standards de jazz cantadas em toada soul, o que começou a caracterizar seu estilo easy. Surgia uma voz diferenciada no mercado. E Berry Gordy não era burro. Sabia com o que estava lidando. A Motown no período já era um império de fazer inveja, com grande entrada no mercado. Gaye gravou entre 1961 e 1970 cerca de dez álbuns para a Motown. Mas o mundo virava de ponta cabeça ao seu redor. E era hora de uma guinada.

Co-escrita por Renaldo ‘Obie’ Benson, Al Cleveland e o próprio Gaye, What’s Going On foi primeiro um compacto com a canção homônima. Sempre sob a resistência e a vigilância de Gordy, Marvin Gaye dava seu primeiro passo para fora do “motown sound” tradicional. E marcaria o passo principal para a realização de um dos maiores álbuns de todos os tempos.

Um diferencial é a narrativa. A partir da faixa-título, o álbum apresenta sempre o ponto de vista de um veterano do Vietnã que retorna aos EUA, sendo apresentado a um universo de injustiça e ódio. No seio da mesma sociedade que fora defender nos confins da selva asiática.  Drogas, pobreza, racismo e guerra são a inspiração das letras.

Picket lines and picket signs
Don’t punish me with brutality
C’mon talk to me
So you can see
What’s going on
Yeah, what’s going on
Tell me what’s going on

“O que está acontecendo aqui? Por que eles estão mandando crianças para tão longe de suas famílias no exterior? Por que eles estão atacando seus próprios filhos nas ruas?” era a pergunta do inspirador da música tema, Renaldo Benson, um ex-combatente que apresentou a temática aos membros da banda Four Tops. Eles gostaram, mas recusaram a “canção”, ainda esboçada. O escrito foi parar na mão de Marvin, que transformou a letra em “coisa de gueto”, mais pesada e alterou toda proposta melódica.

Os distúrbios de Watts, Califórnia, em 1965 também inspiraram Gaye. Em agosto daquele ano, uma motorista afro-americana em liberdade condicional foi parada por excesso de velocidade. Aquilo que seria uma pequena discussão de trânsito acabou se transformando em uma pequena guerra civil. A Guarda Nacional do Exército foi chamada para controlar a situação. Foi a pior agitação da Califórnia até os tumultos de Rodney King em 1992. 34 mortes ocorreram.

Gaye se perguntou: “com o mundo explodindo ao meu redor, como vou continuar cantando canções de amor?”. Ele havia perdido um primo e ouvia o testemunho de seu irmão Frankie que acabara de voltar do Vietnã. Toda atmosfera estava formada para a realização do grande álbum.

Dentro da Motown, entretanto, a ideia de um “álbum de protesto” ainda soava avessa. “Marvin, não seja ridículo. Você está levando as coisas longe demais”, disse por telefone o chefe Berry Gordy. Mas Marvin Gaye se inspirou nos arranjos criados para o grupo The Originals e realizou algo contra o qual mesmo o coração duro de Gordy nada pôde fazer para evitar.

Gaye trouxe músicos de estúdio da Motown, a exemplo de James Jamerson e Eddie Brown. E The Funk Brothers, banda de apoio da gravadora, finalmente teve seus créditos incluídos na capa de um LP, após mais de década de trabalhos prestados a Berry Gordy.

Eli Fontaine no sax, David Van De Pitte (o maestro da Motown), James Jamerson (baixo), Gaye ao piano e teclados, Chet Forest na bateria, os jogadores do Detroit Lions, Mel Farr e Lem Barney, fazem as conversas vocais ao fundo da introdução. O músico Elgie Stover abriu a faixa-título “ei, cara, o que está acontecendo?”. Gaye pediu ao engenheiro Kenneth Sands que desse a ele suas duas tomadas vocais para comparar qual ele queria usar, mas Sands acabou mixando-as por acidente. Gaye gostou do resultado e o “efeito” foi incluído.

What’s Going On vendeu 200 mil cópias na primeira semana. Alcançou disco de ouro e platina, vendendo milhões até o final daquele ano. E mudou a retórica da música negra para sempre.

Marin Gaye se tornou um dos maiores nomes da música em toda história. Teve uma vida marcada por abuso de drogas, violência doméstica e conflitos pessoais e familiares. Morreu assassinado pelo próprio pai (que agredira a sua mãe), com um tiro nas costas. Em 1984, aos 44 anos.

Recentemente, o governo de Michigan, estado americano onde fica a Motown, instituiu o dia 20 de janeiro (data de lançamento do compacto, antes do álbum) como o What‘s Going On Day. O diretor Spike Lee, usou faixas do álbum em sua produção Destacamento Blood (Netflix, 2020).

Estamos em 2021. Afinal, o que está acontecendo?

Ouça. Leia Assista:

What’s Going On (1971) – álbum completo

Imagens: reprodução