Por Carla Françoia e Felipe Mongruel
Na manhã de 10 de abril de 2023, Curitiba amanheceu plúmbea como muitas vezes costuma amanhecer. Ergueu-se na atmosfera uma certa órbita de um amargo de desligamento; uma separação forçada; um adeus. Era o momento da despedida que chegava à cidade. O cinza do céu levava embora, além das dezenas de trupes, trabalhadores, colaboradores, organizadores e curadores, uma centelha de esperança e otimismo que o 31º Festival de Curitiba em suas duas semanas nos deu. Foi o maior, o mais belo de todos os tempos. O mais inclusivo. O mais especial. O mais ousado. Finalmente, Curitiba teve um Festival para chamar de seu.
Se na primeira semana do Festival vimos que a Cultura é o instrumento necessário e capaz de apagar a fuligem de dois anos de pandemia e de um governo que tinha a necropolítica como arma de Estado, como já dito na coluna da primeira semana (Do Horror à Vida: a marca do 31º Festival de Curitiba- https://www.radioculturadecuritiba.art.br/do-horror-a-vida-a-marca-do-31o-festival-de-curitiba/), na segunda e última semana do Festival, não foi diferente. Ele trouxe provocações de todas as espécies à “capital do golpe”, nos fez depararmo-nos com cortes viscerais a nossa essência social, política e antropológica. Porque todo o poder inquietante e provocador da Cultura – um poder que é invisível pois é um poder que chama por transformações – nos levou a olharmos para nós mesmos e para o mundo ao nosso redor e a clamar por mudanças essenciais e necessárias à vida coletiva. Melhor dizendo, a marca da segunda semana de Festival colocou o dedo numa ferida dolorida para a nossa sociedade: encontrar meios para combater um outro poder invisível, que infelizmente, ainda ocupa um lugar de destaque: O fascismo.
O Fascismo não está escondido, às vezes passa o almoço de Páscoa com você, ou mora no apartamento alugado ao lado, divide a mesma calçada, come nos mesmos restaurantes ou vai nos mesmos parques. Ele está na sua família, no seu lazer, no seu trabalho. Ele está em todos os lugares. É uma construção semântica de diversos meios para atingir fins determinados. Ele é espaçoso, amorfo e destrutivo. Já a cultura, essa é expansiva, é ilimitada, é irrefreável e é fértil. Engana-se quem pensa aí do outro lado que estamos falando pelo lado do entretenimento que a cultura tem – Isso também existe, é claro – é do aspecto libertário, libertador e libertino que ela carrega que nos faz alçar olhares para longe, para lugares nunca vistos. A cultura não é só diversão para poucos na classe media, ela é grito daqueles que estão excluídos, a margem da sociedade que os mantém lá como forma de elimina-los. A obra do fascismo, diferente, exclui para eliminar.
Isso foi visto na peça “Cárcere ou Porque as Mulheres viram Búfalos” da Companhia de Teatro Heliópolis que mostra mulheres periféricas lutando pela centralidade da sua existência. Ou como bem mostrado com a peça “Um Tartufo” da Cia do Esplendor do Rio de Janeiro de adaptação do diretor Bruce Gomlevsky. Da obra originária do século XVII, de Molliere, tiramos uma surpresa edificante: o mesmo mal populista dos pregadores do Divino ultrapassa séculos. E isso aconteceu não só pelo figurino baseado no expressionismo alemão dos seus personagens, não só pela construção de quase 100 minutos de peça em que todo o diálogo se apresentou pela ocupação dos corpos em cena sem que a linguagem oral estivesse presente e não só, pelo fim arrebatador dado pelo diretor, que mostra uma realidade da qual queremos e devemos nos livrar: figuras messiânicas e ditatoriais com discursos autoritários e eugenistas não tem e não terão vez e voz no nosso país. Ou pelo leveza dos corpos que se entrelaçam na doçura das cores da primavera, ou no contraste do preto e branco do breu como dançou o Grupo Corpo fechando o Festival sendo ovacionado pela plateia embriagada de êxtase pelo espectáculo apresentado.
Seja lá o que for, Curitiba presenciou a vida nua e crua exposta pela arte nestas duas semanas de Festival. Ela foi chacoalhada por verdades que tentamos esconder, mas que não é mais possível porque pulsa a urgência em fazer diferente, em fazer melhor, em fazer mais, sempre.
Como nem tudo são flores, é dever de informação comunicar aos quatro cantos e em alto e bom tom que a Prefeitura e a Fundação Cultural de Curitiba – FCC – não colaboraram financeiramente com o Festival. Decerto que não seremos irresponsáveis em não lembrar que foram diponibilizados palcos públicos para as apresentações principalmente do Fringe ou da Casa Hoffmann na Mostra Lucia Camargo. Funcionários públicos municipais foram acionados para a limpeza e segurança dos locais. Agora, convenhamos que é muito pouco para uma cidade que se arvora em dizer ser a mais inteligente (leia-se: smartcity) do país, ou que detém buquês europeus no seu estereótipo, para um evento de mais de oito milhões de reais. Este encargo ficou dividido entre os patrocínios conquistados pela organização e a outra parte pela adesão da população curitibana, que maciçamente juntou-se aos turistas que vieram para prestigiar os espetáculos. Fica aqui nosso puxão de orelha ao “mega intelectual” prefeito da cidade que, aliás, não foi visto valorizando e aproveitando o Festival, tampouco transitando pelos teatros da cidade. Fica aqui a nossa pergunta pelo paradeiro do prefeito durante os 13 dias.
Por último, não podemos deixar de destacar o maior resultado do Festival: as sementes lançadas ao solo fértil da capital dos pinheirais. Àquela centelha de esperança e otimismo, sem dúvida alguma, fez brotar uma rosa de união e esperança para o próximo ano. A flecha lançada da inclusão e da diversidade, da participação e da colaboração, da lágrima e do aplauso, fez resistir um corpo orgânico vivo, forte e maduro entre palco e plateia. E que, no baile da vida, enaltece os grandes artistas do mundo: os trabalhadores.
Que venha logo o 32º festival cheio das mesmas emoções, temperando os dias plúmbeos com grandes encontros e grandes escolhas, para, quem sabe, a gente sorrir orgulhosamente desta terra, como a República do Teatro no Brasil.
Carla Françoia é psicóloga, psicanalista, palestrante, Doutora em Filosofia e pesquisadora em Gênero e Sexualidade.
Felipe Mongruel é especialista em Ética pela PUCPR, foi advogado da Vigília Lula Livre, liderou o coletivo que ia semanalmente durante 14 meses em frente ao MPF cobrar explicações dos procuradores da força tarefa Lavajato, foi professor de filosofia, apresenta o programa Vamos à Luta e é um dos diretores do Jornal América Profunda.
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Fotos: Annelize Tozetto, Tiggaz, José Luiz Pederneiras e reprodução/divulgação