Um outro Carnaval


Cinco quartas-feiras de cinzas. Eis a programação de Carnaval que este inacreditável 2021 nos reserva.

Nada o que discordar da decisão de cancelar o Carnaval este ano. A prioridade das prioridades é vacinar a população e frear as mortes por Covid-19 em nosso país. Feito isso, só então voltaremos a curtir com segurança as festas populares do calendário brasileiro. Mas em se tratando do Carnaval, a coisa não é tão simples assim. Não se cancela a maior festa popular do mundo com a mesma facilidade que se cancela uma celebridade nas redes sociais. Engana-se quem pensa que Carnaval é só multidão na rua. Não é. Nem nunca foi só passarela por onde desfilam alegrias artificiais. Carnaval é, por excelência, uma alegoria da própria vida. Não se presta somente a criar um mundo idílico e dionisíaco, mas também a fazer e expor – com todas as cores, batuques e brilhos a que tem direito – uma dura crítica da realidade. É aí que o Carnaval assume seu papel de fantasia às avessas, que mais revela do que esconde, mais chama à reflexão do que diverte, mais cobra do que celebra.

É nas marchinhas de protesto e sambas de enredo de cunho político e social que esse traço crítico do Carnaval ganha voz e ecoa para além dos carnavais. Por essa razão, a festa sempre incomodou os conservadores e os políticos alinhados ao conservadorismo. Muito antes de uma escola de samba dar seu grito e explodir na avenida para desnudar as mazelas do país, a pólvora já queimava o pavio pelas quadras, rodas de samba e releases da imprensa. Pois nesses tempos surreais em que vivemos no Brasil, marcados pelo descaso com a população, negligência com a saúde pública, roubos e arroubos de autoritarismo, o viés cronista dos compositores do Carnaval se torna ainda mais necessário.

tum-tum! tum-tum! tum-tum!

Dos vários estilos de música que frequentam as festas carnavalescas (marchinha, samba, frevo, maracatu, axé etc.), a marcha-rancho é a mais tradicional. A primeira música de Carnaval da história é uma marcha-rancho: “Ó Abre Alas”, composta por Chiquinha Gonzaga em 1899. Decupando o nome, “marcha” é uma composição de compasso binário (imagine um surdo ou tambor batendo constantemente, quase como se emulasse as batidas de um coração); já o “rancho” designa o andamento lento, mais lento que as marchinhas “não-rancho”, como, por exemplo, a clássica “Mamãe eu Quero”.

O andamento mais lento e a tonalidade habitualmente menor, dão à marcha-rancho uma certa expressividade melancólica, muito embora existam marchas-rancho em tom maior e nem toda música em tom menor seja necessariamente melancólica.

A origem da marcha-rancho remonta às marchas militares europeias. Aliás, os primeiros carnavais brasileiros, registrados no final do século 19, eram embalados por ritmos europeus como a polca, a mazurca e a valsa. Um dos segredos do sucesso da marchinha está na facilidade de se “dançar” o ritmo. Dançar entre aspas mesmo, porque ninguém precisa saber dançar coisa nenhuma para embalar numa marchinha. Basta andar de um lado para o outro alternando os dedos indicadores apontados para cima. Quem nunca?

Se não vai pra rua, vai pro vídeo

Mesmo sem Mangueira, Portela, Ilê Aiyê, Banda de Ipanema ou Galo da Madrugada, é certo que o espírito do Carnaval continua presente. Um exemplo disso é o projeto que envolve a marcha-rancho Outro Carnaval, de Paulo Padilha. Compositor paulistano com 25 anos de carreira, Padilha foi fundador e baixista do grupo Aquilo Del Nisso. Tem no currículo shows com Maria Alcina e Suzana Salles, quatro CDs autorais, além de canções gravadas por Juçara Marçal, Simone, Daúde, Palavra Cantada, Suzana Salles, entre outros nomes da música brasileira. A convite do Arts Midwest World Fest, o artista vem fazendo turnês autorais regulares pelos EUA desde 2014. Sua estreita relação com o tradicional Carnaval de rua de São Luiz do Paraitinga, cidade histórica do Vale do Paraíba, assim como com a nova geração de blocos paulistanos, rendeu a criação de marchinhas como Áio no Ôio e Fucei seu Feice, que ficaram entre as três melhores no concurso da Fundição Progresso/Fantástico (Rede Globo) em 2013 e 2015.

Outro Carnaval, que resgata a tradição das marchinhas de protesto, foi lançada no Carnaval de 2020 pelo bloco TODOMUNDO, que desfila nas ruas da Vila Beatriz, em São Paulo. Depois disso, chegou aos ouvidos de Jerry Hui, regente do coral de alunos da UW-Stout University de Wisconsin, EUA. Jerry juntou–se a Aaron Durst, maestro da banda sinfônica da mesma universidade, e dessa união nasceu um projeto colaborativo unindo músicos brasileiros e estadunidenses.

Desse trabalho está sendo produzido um vídeo que será lançado na semana do Carnaval (mais conhecida como semana que vem). Para acompanhar esse lançamento, inscreva-se no canal do Paulo Padilha no Youtube (link abaixo, após os clipes) e ative o sininho de notificações. Enquanto isso, você já pode conhecer a marchinha Outro Carnaval clicando no link a seguir, que mostra o esquenta do bloco TODOMUNDO no ano passado, cujo desfile contou com a participação do Grupo Guaçatom.

Parafraseando a letra de um samba de Chico Buarque, estamos todos, desde já, nos guardando para quando um outro Carnaval chegar.

Clipe do bloco TODOMUNDO, Carnaval de 2020 em São Paulo:

Clipe de Aio no Ôio, uma das três finalistas do Concurso Nacional de Marchinhas Carnavalescas da Fundição Progresso/Fantástico de 2013:

LINK PARA O CANAL DE PAULO PADILHA NO YOUTUBE: www.youtube.com/user/paulolotito

IMAGENS:

  1. Wanderléa, Suzana Salles e Paulo Padilha – foto de Paulinho de Jesus
  2. Chiquinha Gonzaga – foto do acervo da família
  3. Paulo Padilha com integrantes da  UW-Stout University de Wisconsin, EUA – foto de Paulinho de Jesus