Dos Rolling Stones ao modo de fazer música até hoje, a obra do músico é absolutamente revolucionária e fundamental
Não era fácil a vida no interior do Brasil já pelos meados da década de 1950. O país contava com 60% de analfabetos e 80% da população vivia em zonas rurais. Mesmo período no qual um sujeito chamado José Dias Nunes já empunhava uma viola caipira.
Instrumento de origem lusitana, de um Portugal imemorial, a viola caipira é descendente da viola portuguesa — que veio dos instrumentos árabes, como o alaúde — e era muito popular no velho mundo bastante tempo antes dos portugueses aportarem no Brasil, em 1500.
Zé Dias nasceu em um recanto regional chamado Monte Azul, arredores de Montes Claros, nas Minas Gerais, em 1934. Família de 7 irmãos, todos boias-frias, gente agricultora que trabalhava para os patrões fazendeiros da região, de sol a sol.
Como sói acontecer a toda gente de vida humilde, vítima da falta de emprego e em consequência da seca que assolava aquela região, com esperança de um futuro melhor, a família de Zé Dias resolve tentar a vida em São Paulo. E para lá migraram.
Pararam em Paulópolis, região central do estado, onde permaneceram por pouco tempo. Lá, Zé Dias tomou reviravolta na vida: seu pai faleceu. Ele tinha 11 anos. Continuou trabalhando como agricultor, feito toda família, mas recebeu uma herança preciosa de seu progenitor: uma viola caipira.
Algum tempo depois, a família migrou fazer área-de-roça em Valparaíso, nos arredores de Araçatuba, também em São Paulo. Ainda triste pela perda do pai, Zé Dias começou a virar um verdadeiro virtuose no instrumento que herdara. Tocava de tudo que ouvia no pequeno rádio da casa da família, que reproduzia o repertório caipira emitido pelas estações da região. Aos olhos da família já era percebida sua vocação, visto que quando longe do instrumento dedilhava no cabo da enxada e tirava notas de um elástico pregado em uma madeira.
Nunca foi à escola, mas gostava de ler e escrever. Aprendeu sozinho, folheando algumas revistas e jornais que havia à disposição, por onde passava. Assim, preenchendo espaços, acabou por se alfabetizar. Do mesmo modo, sem escola ou referência erudita, foi se tornando uma lenda no instrumento que tinha ali, com dez cordas e a afinação que aprendera.
Quando adolescente resolveu, aos 16 anos, largar a vida de agricultor e tentar a vida fora do ambiente rural, ainda no interior.
No hotel do seu Manoel Padeiro, na mesma Valparaíso, entre um intervalo das “servidas” e outro, cantava músicas populares para os comensais e hóspedes do local. Mais que isso, aos domingos participava do programa Assim Canta o Sertão, na rádio de Valparaíso.
Tradição na época, acabou formando dupla com seu primo Valdomiro. Dali partiram para o circo, outra tradição. No Circo Giglio, fizeram nome de dupla como Zezinho & Lenço Verde. Zé Dias formou com outras duplas: Palmeirinha & Coqueirinho, Palmeirinha & Tietezinho, e a mais exitosa: Zé Mineiro & Tietezinho. Zé Mineiro foi seu nome por um tempo.
Era normal como a troca de casais de hoje a troca de duplas caipiras na época. Sempre uma questão de oportunidade. Apesar de a música dar bom retorno financeiro, nem sempre o “caboclo” estava disposto a arriscar um emprego fixo na roça ou na cidade para se emprenhar em uma aventura na carreira artística. Daí as duplas eram diversas e variadas. Isso seria uma marca na carreira de Zé Dias por décadas, dado o tempo no qual viveu, e também ao seu temperamento, nem sempre muito amistoso.
Em 1953, durante uma festa junina em Araçatuba, Zé Dias conheceu uma moça chamada Nair. Casou depois de 14 meses de um namoro atribulado. Zé Dias (o Zé Mineiro) e Nair tiveram uma filha e eram felizes. Tudo certo. A carreira musical de vento em popa. Mas até aí, nada de novo.
Nesse período todo, muita coisa aconteceu, a velha troca de duplas, alguns registros fonográficos, os shows em circos, e tudo o mais. Até que uma guinada inesperada teve curso.
Durante um show num circo pelos rincões do interior de SP, mais precisamente em Pirajuí, no circo Rapa Rapa, Zé Dias conheceu um sujeito chamado Antonio Henrique de Lima, já conhecido como “Pardinho”, trabalhador braçal nos arredores do circo e que cantava nas horas vagas. Fazia uma “primeira voz” como ninguém. Lembrando que a “primeira voz” na linguagem do músico caipira de então era a voz mais aguda que fica em segundo plano, conhecida tecnicamente como a verdadeira “segunda voz” hoje em dia. Cantaram e se encantaram.
O ano era 1956. A convite do compositor Teddy Vieira, a dupla foi parar na capital paulista, São Paulo cheia de prédios e vias rápidas, completamente diferente do ambiente roceiro a que eram acostumados.
Zé Dias por essa época já tinha assumido a alcunha de vários componentes das duplas das quais tocava, desde seu já conhecido “Zé Mineiro” até o “Palmeirinha” (da Palmeirinha & Tietezinho) das antigas. Mas diante da dupla recém-formada Teddy Vieira teve a ideia de batizar o “caboclo” com o nome de “Tião Carreiro”. Assim nasceu a dupla Tião Carreiro & Pardinho. A vida nunca mais seria igual.
Em São Paulo, era comum os músicos que estavam batalhando se encontrarem em um ponto, e este ficou famoso, entre outros. O Café dos Artistas, mesmo estabelecimento conhecido hoje como Ponto Chic, localizado no Largo do Paissandu, por exemplo. Era um local de encontro de artistas, duplas sertanejas, empresários, agentes de circos, proprietários de emissoras, entre outros, para o estabelecimento de contratações para apresentações. Foi ali que se criou a dupla Tião Carreiro & Pardinho. Nunca com escritório, sempre com contratos “no fio do bigode”.
Certa vez, revelou o empresário Mairiporã, da dupla: “na época, depois do sucesso (…) Tião Carreiro & Pardinho vendiam muito mais. O Tião com o Teixeirinha (músico gaúcho) vendeu na época, mais ou menos uns… cinco milhões de LPs, nas primeiras tiragens. (…) pra você ter uma ideia, ficava aquelas carretas do fim de semana, aquelas carretas pra levar disco pro interior, dez, quinze carretas de caminhão esperando fabricar o disco, já pra levar. O Tião Carreiro e o Teixeirinha, os dois venderam muito disco, nossa!”.
Waldenyr Caldas em entrevista na época declarou que “em verdade, esse local (o Ponto Chic) é apenas a continuação de uma série de outros três, onde esses profissionais sempre se reuniam. O primeiro local foi a Avenida Ipiranga esquina com a Avenida São João, no tradicional Bar do Jeca. Posteriormente, esse local foi substituído por um outro bar na Avenida São João esquina com a rua Dom José de Barros”.
A história deu conta e todo mundo sabe. A dupla da hora era Tião Carreiro & Pardinho. Mas o grande diferencial foi o dia em que em torno de 1957 Tião Carreiro apareceu no estúdio com uma batida completamente diferente do que se conhecia na música caipira até então. Uma espécie de catira, mas com dobrada que se dava entre o violão já tradicional de seis cordas e a viola caipira, que ele tocava como poucos. Assim nasceu aquilo que veio a ser conhecido como pagode.
Nas letras, histórias narradas de forma rimada, como é natural da música caipira, mas em uma toada totalmente diferente. A coisa pegou como febre. Todo mundo começou a fazer igual.
Outra coisa: a batida de Tião Carreiro é absoluta. Influenciou todo mundo desde então. A afinação que aprendera em seus dias de circo no intervalo entre uma apresentação e outra da já famosa dupla Tonico & Tinoco — a tal “afinação cebolão” — acabou influenciando o guitarrista dos Rolling Stones Keith Richards que adotou a mesma para seus futuros riffs dos discos de sua banda a partir de 1968.
O fato se deu quando o músico britânico esteve em Matão, interior de São Paulo, junto com Mick Jagger, em férias lendárias e intensas, no verão brasileiro de 1968. Resumindo: Tião Carreiro — via Tonico & Tinoco — ajudou a mudar a história do rock‘n roll. Jagger e Richards ouviam Tião Carreiro & Pardinho sem parar durante o tempo que ficaram no Brasil, reza a lenda.
Para além, Tião Carreiro & Pardinho gravaram cerca de 45 discos ao longo da carreira, sendo considerados até hoje uma das duplas caipiras mais populares do país.
Gente ligada à música pop tem muito que dizer sobre o Tião Carreiro e sua forma de tocar. “Tião Carreiro é nosso Jimi Hendrix. Sua viola está para nossa música caipira como a guitarra de Jimi está para o rock’n roll. Sua importância é imensurável e incomparável. Era um mestre das 10 cordas e suas composições inspiradas têm muita verdade nas letras. Na minha opinião sempre será o maior”, revela Fabio Elias, da banda Relespública, sobre o ídolo que o influenciou desde a infância no interior do Paraná.
Tião Carreiro & Pardinho tiveram várias fases, devido a diversas separações, dado o temperamento irascível do gênio Tião Carreiro. Entre idas e vindas, mudaram os rumos da música mundial e são até hoje reverenciados.
Em 1993, já morando há tempos em São Paulo capital, Tião Carreiro teve um problema no rim aliado a uma diabetes que já o acompanhava, e faleceu aos 58 anos de idade.
Mudou a história da música por completo. Foi-se ali o maior violeiro do Brasil.
O rei do pagode.
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Ouça. Leia. Assista:
Tião Carreiro & Pardinho – álbum
Biografia Tião Carreiro – site oficial
Cowboys do asfalto – livro por Gustavo Alonso – PDF
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Imagens: reprodução