Em Curitiba, ao lado de Pedro Hey e Fabio Elias, maranhense inicia produção de repertório com que pretende “continuar” a obra do ídolo
O timbre é idêntico ao de Raul Seixas. Com a vantagem de uma tecitura e uma extensão vocais que lhe favorecem ainda mais cantar como se fosse o ídolo do rock brasileiro morto em 21 de agosto de 1989, há exatos 34 anos. O domínio do falsete, tal qual o “bruxo”, completa o virtuose de Tony Gambel (pasmem, de 34 anos!) cuja voz pode ser facilmente confundida com a do baiano que ainda hoje brilha como estrela de primeira grandeza na constelação da música brasileira.
Tony Gambel nasceu no dia 17 de agosto de 1989, pouco dias antes de Raul Seixas partir naquele fim de década. Além das características vocais do ídolo, Tony Gambel tem o sotaque nordestino. Ele nasceu e mora em Montes Altos, no Maranhão, onde canta em bares e trabalha como músico. Apesar de um repertório variado, é cantando Raul Seixas que Gambel chama a atenção e garante visibilidade. Tanto nos palcos, como nas redes sociais.
Pois bem. Foi exatamente a semelhança com a voz de Raul Seixas que chamou a atenção do produtor Pedro Hey, de Curitiba, e fez com que o maranhense viesse parar na capital das araucárias durante cerca de 50 dias para grandes projetos que, lá na frente, poderão representar um ponto de reviravolta em sua vida. Aqui, entre julho e agosto, ele gravou o primeiro registro fonográfico autoral, formou uma banda com músicos de peso, fez três shows bombásticos e partiu para cantar em São Paulo.
Sim, meus amigos, tudo numa tacada só. Depois dessa meteórica e produtiva passagem por Curitiba, Tony Gambel toca nesta segunda-feira, 21, na Praça da Sé, em São Paulo, como uma das cinco atrações da 34ª Passeata Raulseixista, o maior evento do país em celebração à memória de Raul Seixas. O ato público, tendo o grupo Ira! como headline, reúne adoradores e as melhores versões atualizadas do grande ídolo no dia dos 34 anos de sua morte.
Para dar corpo ao trabalho, Pedro Hey convocou o intrépido líder do Relespública, guitarrista e vocalista Fábio Elias, a quem incumbiu a tarefa de formar uma banda de apoio para Tony Gambel. Missão dada, missão cumprida, Fábio Elias chamou o baixista Marcus Vinícius Franco e o baterista Rogério Franzini para comporem Os Novos Rauls. Músicos tarimbados e fãs da obra de Raul Seixas, foi “um, dois, três” e – pah! – a mágica estava pronta! Nascia a banda Tony e Os Novos Rauls, que já subiu aos palcos do Hard Rock Café, Armazém Garagem e Tork’n’Roll, todos espaços nobres do rock em Curitiba.
Mas, segundo o próprio Tony Gambel pontua, o ponto culminante de sua vinda ao Sul foi a gravação de três de suas músicas autorais, compostas como se fossem de autoria do próprio Raul Seixas, se vivo estivesse. Sim, o rapaz é pretensioso. Mas qual artista de verdade não o é? Ele próprio explica: “O trabalho autoral que estou fazendo é como se fosse uma espécie de continuidade do (trabalho do) Raul”. Surpreendentemente, não é só pretensão.
Logo na primeira audição de “Raulzitando”, vem à cabeça a pergunta: “música nova do Raul?”. Sim, meus amigos, a faixa de trabalho do EP de Tony Gambel parece ser uma música nova de Raul Seixas em que o próprio assume que não morreu, está entre nós e que tem muito ainda a falar. “Raulzitando” está tocando na Rádio Educativa desde o último sábado, dia 19, e estará no EP a ser lançado em breve ao lado de “Jargão de Hippie” e “O Astro”.
A ideia do trabalho, conta Tony Gambel, não é um registro das músicas de Raul com a voz de Raul. É escrever letras e compor melodias como se tivessem saído das próprias mãos e cabeça de Raul. Em “Raulzitando”, por exemplo, anuncia a rentrée em 2023 do imorrível Raul Seixas: “Se um dia eu morri, eu não sei / Eu só sei que voltei!”. Lembra que: “O empresário e a empregada eu botei pra dançar”. E arremata com o que pensa sobre o rock’n’roll: “… pois o rock nasce na letra, antes da guitarra tocar!”.
E, com essa frase, Tony Gambel entrega a charada de como realiza as suas composições.
Polêmicas à parte, para Tony Gambel, o rock’n’roll (ou seja, a música de Raul Seixas) nasce na letra, na poesia, nas intenções, nas ideias, na tradução de um comportamento e de um pensamento. Da fato, ele tem razão. Bater em guitarra qualquer um bate. Quero ver virar um Raul Seixas só batendo na guitarra. Né? Então… Pensando assim, é que Tony e Os Novos Rauls estão caindo na estrada apostando nas composições próprias do maranhense.
“O Astro”, explica Tony Gambel, trata “da perda de fascínio pelas coisas, da vulgarização das coisas, da gente não se sensibilizar mais com as coisas, de nos tornarmos pessoas secas”. “É um tipo de pauta que o Raul nunca tratou e que acho que ele trataria agora”, diz, apontando para a ideia de uma projeção do que teria sido a obra de Raul Seixas depois de 1989. Como a letra vem antes da guitarra tocar, ele primeiro escreve e depois compõe. “Gosto do Belchior porque ele fura a melodia com a letra se for preciso. Ou porque é necessário”, compara.
Tony Gambel gosta de manter o domínio total do processo criativo. Trabalha sozinho à exaustão para que o que escreve possa se assemelhar ao máximo com o que Raul Seixas teria escrito em nossos dias. “Cada sílaba, cada verbo de ligação, cada coisinha que está ali é fundamental”, diz, ao elucidar como chega no resultado pretendido. A admiração pelo ídolo surgiu ainda criança. Nascido em Montes Altos, no Maranhão, foi morar com o pai e mais um irmão em Dom Eliseu, no Pará, enquanto a mãe e dois outros irmãos ficaram na terra natal.
Em meados dos anos de 1990, lá pelos sete ou oito anos, foi que ouviu Raul Seixas pela primeira vez. Sentado no chão da sala de estar da casa dos avós, para onde tinha se mudado com o pai, assistiu a um clipe de “Maluco Beleza” na hora do almoço. Foi aí que bateu! Nem tanto pela música, nem tanto pela figura do artista. Mais pela voz. Primeiro, o garoto se apaixonou pela voz que lhe marcou a memória a partir daquele momento, sem saber de quem se tratava.
Tempos depois, na pré-adolescência, morava de volta com a mãe em Montes Altos, no Maranhão, para onde a sua avó paterna também se mudara depois de se tornar viúva. O moleque, então, tinha o hábito de pegar a bicicleta para visitar a avó no sítio distante 12 Km de sua casa. Numa tarde de sábado, percebeu que do toca-fitas que um de seus tios ouvia saía a voz que lhe marcou a infância e que nunca mais esquecera.
Até que tocou “Maluco Beleza”. Pronto! Mais uma vez, bateu! “Larguei tudo o que estava fazendo e, a partir de então, ia para a casa da minha avó só para ouvir aquela fita. Passava horas e horas ouvindo”, lembra. O tio, comovido, deu fita e toca-fitas para o garoto que, todo empolgado, amarrou o aparelho na garupa e começou a pedalar feliz da vida a caminho de casa. Mas, infortúnio de pobre, começou a chover e o toca-fitas nunca mais funcionou.
Moleque impertinente e louco para ouvir Raul Seixas, Tony Gambel saía procurando casas de vizinhos, amigos e parentes que tivessem um toca-fitas para ouvir Raul Seixas. Hoje, cai na gargalhada quando lembra que, ao se aproximar da porta de uma vizinha, ela gritou: “Vem logo ouvir essas tuas porqueiras!”. Bom lembrar que, no sertão maranhense, mesmo no início dos anos de 2.000, não eram comuns aparelhos de CDs e muito menos ouvir Raul Seixas.
Rebelde e sem rumo, foi quando seu pai lhe disse: “Filho, você quer é pegar no pesado”. E botou o jovem para trabalhar numa carvoaria. Com quatro diárias no emprego, juntou 60 cruzeiros com um amigo e comprou um Tonante, o violão que iria lhe revelar que tem a voz idêntica ao de Raul Seixas. As três primeiras músicas que aprendeu: “Medo da Chuva”, “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás” e “Ouro de Tolo”. Uma conhecida beata da cidade soube do talento do jovem e lhe pediu para que se apresentasse na quermesse da Igreja.
Com a cara, a coragem e o Tonante, Tony Gambel arrebatou a plateia. A partir daí, passou a se dedicar ao dedilhado. Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer e decidiu trabalhar… como músico! Como em Montes Altos não há espaço para apresentações regulares, vai para Imperatriz do Maranhão cantar em bares, festas e bailes. Apesar da paixão desde criança por Raul Seixas, nunca fez do dom natural o foco central do seu trabalho. Seu repertório é variado e serve para todos os gostos dos que moram no interior do Maranhão.
Vamos deixar claro: Tony Gambel não compõe o esteriótipo do roqueiro que canta Raul. Não usa roupas extravagantes, não rebola no palco, não usa cavanhaque e nem óculos redondos. Aliás, ele faz questão de frisar: “Gosto da obra do Raul, não gosto do comportamento desregrado que ele teve”. No caso, ele se refere aos desvios de comportamento de Raul que lhe tiraram a vida com apenas 44 anos de idade.
Tony Gambel prefere se inspirar no que há de bom em Raul. Para isso, tomou uma decisão: distinguir o que é identificação e o que é influência. “Eu decidi ficar só com aquilo que eu me identifico porque eu sou eu! Então, eu vou ficar com as identificações. Porque as influências tendem a te corromper: eu vou fazer aquilo porque acho bonito mesmo que aquilo não seja eu”, diz. Com certeza, não precisa desenhar.
Tony Gambel está aproveitando o dom natural de cantar identicamente como Raul Seixas para realizar um trabalho autoral impactante e, se tudo der certo, de forte apelo comercial. Segundo Fábio Elias, Pedro Hey tem se responsabilizado pela direção artística do cantor, enquanto ele cuida da direção musical do grupo Tony e Os Novos Rauls. O lançamento do EP vem cercado de expectativas e certamente será assunto entre aqueles que, no meio do shows, costumam gritar: TOCA RAUUUUUUL!!!
__
Entrevista realizada na noite do dia 16 de agosto, véspera do aniversário de Tony Gambel, entre a passagem de som e a sua apresentação em duo com Fábio Elias, no Wonka, última desta temporada em Curitiba.
Todas as fotos tiradas da página Tony e Os Novos Rauls, no Facebook