Thriller suburbano, “Coração de Neon” surpreende pela simplicidade estética


Filme 99% curitibano, teve a pré-estreia no dia 5 de março, no Teatro Positivo, com tapete vermelho e participantes do elenco

BoqueLove. O termo resume toda a essência do filme Coração de Neon que será lançado no próximo dia 9 de março em circuito nacional, em pelo menos 115 salas de todo o país. A produção integralmente de Curitiba é uma declaração de amor ao Boqueirão, bairro periférico da cidade considerada a mais europeia das capitais brasileiras.

BoqueLove, na verdade, é o carinhoso apelido de Coração de Neon, um Corcel velho, caindo aos pedaços, mas todo decorado com luzes coloridas e veludo cor-de-rosa. O veículo é o instrumento de trabalho de Lau e Fernando, pai e filho que batalham a vida como animadores de entrega de mensagens ao vivo.

As ruas do Boqueirão são apenas uma alegoria que o diretor e roteirista Lucas Estevan Soares, de 32 anos, se apropria para apresentar ao mundo a sua visão da cidade em que nasceu e se criou e que, embora fria e conhecida pela limpeza, está muito longe de ser uma Europa.

Ao contrário, no filme, Lucas Soares deixa claro: o cotidiano de quem é da periferia desconhece qualquer resquício da história, riqueza ou cultura do Velho Mundo. A realidade é bem outra.

“Briga de torcidas faz parte da realidade, pegar busão no terminal faz, carro dos sonhos faz, carro de mensagens faz, dogão na madrugada faz, isso faz parte da realidade da periferia”, afirma. (Para quem não sabe, busão é ônibus para os curitibanos).

Lucas Soares também deixa claro que tudo no roteiro é intencional. “Eu escolhi, sim, retratar o lado periférico porque é a maior parte da cidade. Não só de Curitiba. Do Brasil todo. É a periferia de Curitiba que conversa com todas as periferias do Brasil. E isso torna a história universal. Ela vence a regionalização pela conexão periférica. Isso foi intencional”, esclarece, enfaticamente.

Forte apelo de história cheia de surpresas

Ao retratar a capital do Paraná sem os pontos turísticos, como o Museu do Olho e o Jardim Botânico, Lucas Soares explora outros elementos visuais icônicos para assegurar uma linguagem cinematográfica também universal, como as belíssimas araucárias, árvore-símbolo da região, e um vendedor de algodão-doce fantasiado de capivara.

A casinha verde em que vivem Lau e Fernando também é fundamental na ambietação de Coração de Neon. Em tábuas de madeira e janelas de guilhotina, esse tipo de construção era bastante característico da cidade até os anos de 1970. Na casinha verde, segundo o cineasta, funcionava uma sorveteria que ele frenquentava quando criança. O imóvel foi demolido no ano passado.

A simplicidade estética e o forte apelo de uma história cheia de surpresas, contada com uma produção claramente de baixo custo, talvez sejam os motivos que estejam levando Coração de Neon a conquistar plateias, prêmios e elogios no mundo todo. Durante 2022, o filme foi apresentado em diversos festivais internacionais de cinema, incluindo uma bem sucedida passagem pelo Marché du Film, mostra comercial do Festival de Cannes onde cerca de 4 mil produções são negociadas anualmente.

Coração de Neon ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro no Festival Internacional da Rússia, em Moscou, e o prêmio Remi do 55º WorldFest Houston, nos Estados Unidos, tendo sido selecionado para outros cinco festivais. A carreira internacional de Coração de Neon e sua exibição em plataformas de streaming já estão em negociação. De acordo com Lucas Soares, o epílogo do filme deixa ainda margens para que uma continuidade possa ser filmada em breve.

O futuro do filme depende agora da recepção do público brasileiro a partir do próximo dia 9. Lucas Soares não esconde a ansiedade. “Estou com o c* na mão”, confessa. Mas, muito confiante no bom produto que entregou ao cinema brasileiro, sentencia: “vai dar boa!”.

Gatilhos para um fim trágico

Coração de Neon trata da busca de um sonho mesmo contra as dificuldades impostas pela vida e pelo ambiente em que se vive. Lau é um empolgado senhor de meia-idade que mora com o filho Fernando, outro sorridente boa praça. Os dois, com forte sotaque curitibano, trabalham juntos e economizam para realizar o sonho de Lau de viver nos Estados Unidos. E, para isso, contam com a força de trabalho de Coração de Neon.

Após uma performance que termina de forma trágica, a vida de Fernando sofre uma reviravolta e cai numa sucessão de episódios que passa a revelar o lado cruel e violento do cotidiano nas periferias. Para quem vive às margens, a qualquer momento, uma pequena situação inusitada ou uma atitude impensada pode se transformar no gatilho para um fim trágico.

Apesar de todas as vicissitudes, Fernando não deixa de alimentar o sonho do pai de morar lá fora. Ao lado do fiel amigo Dinho e da doce Andressa, com quem tem um envolvimento romântico, atravessa pelas mais diversas situações. Dentre elas, uma violenta briga de torcidas, cena frequente nas ruas de Curitiba.

Elenco conciso e sem estrelismos

Coração de Neon pode ser classificado como um thriller suburbano, com doses de comédia e drama. O filme chama atenção pela forma despretensiosa e econômica com que foi realizado. Algumas inconsistências no roteiro, como transições de temas sem muitas justificativas, são compensadas pela honestidade da direção e sinceridade da entrega dos atores aos seus personagens.

O elenco é conciso e sem estrelismos. As atuações trazem à vida personalidades corriqueiras, que se divertem ao simplesmente trocarem cumprimentos ou estão sujeitas à violência doméstica. Segundo Lucas Soares, o elenco é 99% curitibano e conta com muitos moradores do Boqueirão, onde foram realizadas as filmagens durante duas semanas.

A produção é totalmente independente e foi bancada com recursos próprios, de amigos e alguns patrocinadores, sem contar com nenhuma Lei de Incentivo. É este o outro aspecto que salta aos olhos em Coração de Neon: a ousadia empreendedora de Lucas Soares e de sua mulher Rhaissa Gonçalves, produtora do filme.

O casal criou a produtora IHC – International House of Cinema em 2012 e se mandou para Miami, onde conquistou clientes e contas que renderam o suficiente para a produção cinematográfica. Em 2018, Lucas Soares começou a escrever o roteiro e os dois se perguntaram: “a gente começa uma família, dá entrada numa casa ou vai embora pro Brasil fazer um filme?”.

A resposta vai estrear no próximo dia 9 em circuito nacional.

Casal financia filme com o próprio bolso

Lucas Soares denomina sua estratégia de produção independente como “Cinema de Guerrilha”. Ou seja, sem contar com recursos públicos ou grandes produtoras, é possível fazer cinema e ganhar o grande público. “Eu acredito no cinema como negócio”, anuncia.

Coração de Neon é a demonstração desse espírito desbravador de Lucas Soares e de Rhaissa Gonçalves. Os dois foram os responsáveis praticamente por toda a produção, do roteiro à distribuição nas grandes cadeias de cinema de todo o país.

A competência do casal fica patente também nas telas. A cena da briga de torcidas surpreende por ter sido filmada com locações reais do sistema de transporte coletivo de Curitiba e envolvendo viaturas e grupamentos da Polícia Militar do Paraná.

“Eu falei pra Rhaissa: ou é polícia ou não é polícia; sem polícia de verdade, eu ia reescrever a história”, lembra o diretor. Bom destacar que o roteiro explora o mau comportamento de um membro da corporação. Foram três meses de negociações até que o comando da PM-PR concordasse com a participação.

“Eu também tinha preconceito com a PM. Mas, quando fui de fato conhecer a galera, eles explicaram porque não apoiam a participação em filmes de ficção: os produtores não fazem o dever de casa”, conta. “Eles chegam lá sem saber os nomes dos comandantes, não sabem como funciona a hierarquia. Nós estudamos tudo isso antes de chegar neles. Hoje, a galera da Rocam me liga perguntando quando o filme vai estrear”, diverte-se Lucas Soares.

O curioso é que tudo começou em 2014 quando Lucas Soares imaginou uma perseguição policial envolvendo um carro de telemensagem todo decorado. Agora aquela cena imaginária vai ganhar as telas e será colocada para o julgamento do grande público. “Espero que pelo menos os curitibanos abracem o filme”, suspira. Oxalá esteja certo!

 

FICHA TÉCNICA:

Direção e Roteiro: Lucas Estevan Soares
Produção: Rhaissa Gonçalves / IHC
Elenco: Lucas Estevan Soares, Paulo Matos, Ana de Ferro, Wawa Black, Wagner Jovanaci, Cili Nandes, Wenry Bueno, William Barbier
Trilha original: Gustavo Andriewiski e Lucas Estevan Soares