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Fui embora sentindo o impacto do chão que reverberava do calcanhar até as bochechas. O tênis barato, de sola dura não tinha conforto em caminhadas mais aceleradas. Precisei diminuir a velocidade. Me senti velho a cada passo e quis esconder a pele que já faltava ingredientes para dar consistência mais firme. Colágeno, me disseram.
O chão passando pelos meus pés me faz desviar de pensamentos enfurecidos. Talvez devesse ir pelo caminho mais longo e prolongar a inutilidade do tempo que se constrói
entre um lugar e outro. Cidades têm como sintoma mais evidente o tempo que é dito como perdido entre dois pontos. O tempo que leva de casa ao trabalho é um sinal do nível de qualidade de vida que se pode ter numa cidade. Logo, ou se está trabalhando, ou se está dormindo, comendo, vendo séries. Séries são metonímias das novelas.
Igualmente inúteis que sugam uma fatia importante do tempo dos zumbis do consumo.
Dobro a esquina e a esquina me lembra os tortos do mundo, começando pelos canhotos. Ninguém inventa um abridor de latas para canhotos por duas razões: trata-se de um gene recessivo, então supõem-se que não há mercado. A outra razão é que os canhotos aprendem desde cedo a usar todos os utensílios e materiais para destros com a mesma ou até melhor eficácia que os ditos genes dominantes.
Sou um recessivo e um dia achei que seria um diferencial para ser um bom jogador de bola. Nem para isso. Estava sempre entre os últimos, quando não era o último, a ser escolhido para pelada.
Nunca se sabe o que se encontra quando se dobra uma esquina. Nessa hora é bom ficar esperto.
Qualquer hora é bom ficar esperto. Esquinas e futebol são caixinhas de surpresas. Detesto clichês e futebol. Prefiro as esquinas.
Avisto o local e faltam uns cinquenta metros. Juventude se mescla entre “skatistas” e maconheiros na Praça do Gaúcho. Um bom lugar para parar e olhar, só olhar. Ainda dá para desistir. Ninguém me viu aqui ainda. Poderia ir para o bar, ou um café, ou ir para casa dormir. Estou cansado. Meus pés doem. Esse tênis barato faz vibrar minhas bochechas.
Não consegui parar e os pensamentos são apenas desvios das tormentas que vêm pela frente.
Me aproximo. Capela um, capela dois, capela três. É aqui. Vejo seu nome, coroas de flores, rostos estranhos e alguns conhecidos. Vou embora. Eu não posso fazer isso. Entro, meus pés doem. Vejo a família sentada ao redor. Devem estar cansados. Uma noite inteira velando. Quanto tempo levará entre aqui e lá? Que horas será o enterro? Que desculpa dou para sumir daqui já?
Não posso. Fico mais e não consigo mais desviar os olhos do morto. Não tenho mais caminhos para recobrir alguns pensamentos. Vou até a viúva, lhe abraço e digo que sinto muito. E só. Ela soluça. Culpa por se ver livre, será? Todos sabiam que o casamento ali já tinha sido enterrado faz tempo. Eu não presto. Ela se afasta. Um padre entra. As pessoas se levantam. Eu já estava de pé, sentindo o latejar dos dedos. Começa a falar como se fosse íntimo daquele ali que todos sabiam que era ateu. Espero ter amigos que evitem isso na minha hora e não coloquem um fantoche para falar de mim.
Aproveito e saio enquanto todos ouvem o padre que tudo vê. Que se dane se me viu sair.
Sentirei saudades. Amigo de bar é como senha de fila de banco. Você espera e sabe que uma hora vão te chamar. Ninguém sabe quem irá primeiro, todos escondem os seus números. Antes ele do que eu. E quando um vai, o bar toma dois caminhos: do abandono e do beber o morto. Uns aprendem, outros é tarde demais e tudo será razão para encher a cara.
Eu parei. Meus pés doem. Sinto reverberar o chão duro na minha pele flácida. Falta ingrediente.
Andarei mais devagar. O tênis é barato. A cada esquina lembro dos tortos. Que ódio! Basta. Não te esquecerei meu amigo. Sou homem de caminhar e não posso te olhar mais assim tão sério.
Sorria em minha memória!
Acho que vou descalço até minha casa. Preciso de um banho. Aguento. Vou de ônibus. Tênis barato. Vai começar a chorar agora? Desgraça!
Vai passar. Como o chão passando debaixo dos meus pés, vai passar.
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