Sócrates. O mais original da História


Há 10 anos morria o jogador que redefiniu os limites entre esporte e cidadania. Ídolo encantou toda uma geração de brasileiros em uma época na qual o país também buscava seu caminho para a liberdade democrática

O jornalista Juca Kfouri costuma dizer que existem três tipos de jogadores que encantam: o bom jogador, o craque e o gênio. Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira conseguiu a proeza de ser “apenas” gênio.

Nascido em Belém, em 1954, filho de seu Raimundo, um funcionário público federal, apreciador de literatura e filosofia, que nomeou os três primeiros filhos com nomes de filósofos gregos: Sócrates, Sóstenes e Sófocles. A pedido de dona Guiomar, a mãe, Raimundo “facilitou” nos outros três: Raimundo Junior, Raimar e Raí.

Sócrates aportou com a família em Ribeirão Preto aos dez anos, e já começou a fazer história nos gramados. Magro, alto e desengonçado, teve de arrumar jeito com o jogo que exige força, velocidade e agilidade. Na impossibilidade de girar o corpo com a desenvoltura necessária, em fundamentos como o drible e o pique, desenvolveu o toque rápido e o posicionamento inteligente como arma para articular as jogadas e atingir os objetivos. Muito especialmente o toque de calcanhar, que tornava suas jogadas surpreendentes e desconcertantes aos adversários. Também era bom cabeceador e — por estar sempre bem posicionado, nos espaços vazios do campo — jogava com a cabeça erguida, o que do alto de seus 1,90m privilegiava a raríssima visão de jogo, e conferia elegância rara.

Daí a alusão diferenciada que lembra Juca Kfouri: o sujeito não tinha corpo pra ser bom jogador, com isso não era craque — o driblador velocista, atlético e de arremate mortal —, mas era genial. Certamente o jogador mais original da História. E tal originalidade acabou por sair das quatro linhas do campo de jogo e foi muito além, arrebatando corações de mentes de toda uma geração de brasileiros e pessoas ao redor do mundo.

Para começo de conversa, o jovem Sócrates nunca privilegiou o futebol, mesmo quando já era profissional do Botafogo F.C. de Ribeirão Preto. Seu negócio era estudar. Ingressou no curso de Medicina e deixava de treinar junto aos demais atletas, cumprindo apenas meio expediente no clube, para sentar-se aos bancos universitários.

Mesmo assim, conseguiu destaque e sua primeira convocação para a Seleção quando ainda estava no Botafogo, campeão do primeiro turno do Campeonato Paulista de 1977, ano no qual se formou.

Em 1978, a proposta irrecusável: 300 mil dólares da época, a maior transação do futebol brasileiro de então, o levaram ao Sport Club Corinthians Paulista. Foi um tanto difícil a escolha, mas a partir dali Sócrates dedicaria sua vida profissional apenas ao futebol. E o resto é história.

Campeão paulista de 1979, iniciou logo depois, ao lado de nomes fundamentais na trajetória do Timão, um movimento que mudaria os rumos do futebol: a Democracia Corintiana.

A coisa funcionava mais ou menos assim: todos, do técnico (Mário Travaglini à época) ao roupeiro do clube, passando pelos atletas, todos decidiam por votação os rumos a serem traçados. Aboliram a concentração, dividiam as premiações de forma igualitária, e influenciavam nas contratações e dispensas a serem efetivadas pela equipe técnica.

Foi um rebuliço. O país vivia o período de anistia e redemocratização — gradual e irrestrita — mas o presidente ainda era um general — João Figueiredo. Não demorou a ressoar em Brasília os “métodos” libertários adotados dentro do Parque São Jorge. E também na rua da Alfândega no Rio de Janeiro, onde funcionava a CBD (depois CBF). Mas, ainda mais e principalmente: na sociedade, especialmente a imprensa, cujas redações pairavam ávidas por liberdade e democracia, havia já quase 20 anos, desde o golpe de 1964.

Ainda além: o Corinthians é o time do povo. E a democracia é o povo no centro das decisões. Mais: o time conquistou o bicampeonato paulista 1982-83 com uma equipe que fez história e repleta de nomes pra lá de participativos, a partir de então: além de Sócrates (o Doutor), o folclórico Biro-Biro, o craque Zenon, o símbolo da raça Zé Maria e o fundador do Partido dos Trabalhadores Wladimir (lateral e sindicalista). A cereja do bolo veio com a ascensão ao time principal de um jovem da Zona Leste, diferente dos demais jogadores de um país continental amante do futebol, ele era amante do rock, cabeludo e dado a muita farra e confusão: Walter Casagrande Júnior. Roqueiro e matador, estufava as redes com a fúria que já fora de Rivelino e agora ganhava timbres de guitarras distorcidas.

O encantamento foi instantâneo. Os caras eram campeões, cheios de estilo, carismáticos, estavam ao lado do povo, com ideias de liberdade e imensa penetração na mídia. Era como se os Rolling Stones formassem um time de futebol e saíssem jogando por aí, com o reforço Bob Dylan comandando o meio-campo e Iggy Pop na artilharia da trupe.

E durma-se com um barulho destes, ainda no meio de tudo houve a Seleção de 1982. A mais marcante em muitos anos. A debacle dos Canarinhos em Barcelona, na Copa da Espanha, ainda é o maior trauma esportivo de mais de uma geração de brasileiros. E assunto para um outro texto, muito mais complexo e uma espécie de “spin off” deste mesmo.

Foi um sonho. E foi real. Todos os jogadores da equipe, reforçados por nomes da mídia como Washington Olivetto, Osmar Santos e o já citado Juca Kfouri, ainda expoentes da música como Fagner, Toquinho e a corintianíssima Rita Lee. Todos foram às ruas pedir por eleições livres e democráticas no movimento das Diretas Já. O resultado todos já sabem. Ficaram os troféus.

Pois era claro que nem todo mundo era afeito às práticas democráticas dentro do esporte. Afinal, hierarquia, comando e disciplina sempre fizeram parte deste ambiente. Em que pese o time ter sido vencedor, atletas como o goleiro Leão, por exemplo, sempre foram desafetos do método da Democracia Corintiana. Ele reza até hoje que o tal voto direto era sempre manipulado pelos líderes do movimento. Enfim, quando o assunto é democracia, em um país que passara boa parte de sua história envolvido em ditaduras e interrupções dos processos de eleições livres a cada década, desde 1930, não era fácil aceitar o livre arbítrio em ambiente tão toscamente comandado historicamente por coronéis e caciques da política, do empresariado e do dinheiro.

Com a derrota do projeto das Diretas Já, Sócrates — conforme prometera — foi jogar na Itália. Ao desembarcar em Florença, já como contratado da Fiorentina, foi perguntado se preferia Mazzola ou Rivera (ídolos locais), respondeu: “Não os conheço. Vim aqui para ler Gramsci no idioma original e estudar a história do movimento operário”.

Ficou pouco mais de um ano. Retornou ao Brasil para jogar ao lado de Zico num Flamengo campeão carioca de 1986. Mesmo ano da copa que enterrou de vez o sonho de ver aquela geração campeã do mundo.

No Brasil, a Democracia Corintiana arrefeceu. Casagrande foi preso por porte de drogas, e também rumou para a Europa, onde praticamente encerrou bem sucedida carreira. Sócrates ainda jogou pelo Santos (seu time de infância) e encerrou as atividades no mesmo Botafogo que o revelou, em Ribeirão Preto. Seu irmão mais novo, Raí, o outro filho do seu Raimundo, também foi capitão da seleção em uma copa.

Sócrates exerceu a medicina, a democracia e a boemia até o fim da vida. Gravou um disco de música caipira e se divertiu até o fim. Chegou a ver um país pleno de democracia e trilhando um caminho de justiça social.

Morreu em 2011 devido a complicações pelo uso de álcool, aos 57 anos, no mesmo dia em que o Corinthians levantava mais um título nacional, no Pacaembu. Para sua sorte, não viveu para ver o retorno do fascismo ao poder, neste Brasil que tanto amou.

Tornou-se um símbolo da luta contra o autoritarismo em todo o mundo. Camisetas são estampadas em peitos sonhadores ao redor do planeta. Livros, filmes, mostras e eventos são realizados em sua memória até hoje. Em seu espírito ainda repousa a esperança da retomada por dias melhores.

Ele foi Sócrates Brasileiro. O jogador mais original da História.

Ouça. Leia. Assista:

Socrates – Footballer, Philosopher, Legend, por Andrew Downey

Sócrates, por Tom Cardoso

Democracia Corintiana – filme

Sócrates – Disco completo, 1980

Imagens: reprodução