Série de reportagens investigativas “A Crise da Cultura” revela exclusões étnico-raciais, regionais e sociais na aplicação da Lei Aldir Blanc no Paraná


O foco da série de reportagens recai no caso do Paraná,  que teve o terceiro pior resultado na aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc entre 2020 e 2021

Por Observatório da Cultura do Brasil

O portal do Le Monde Diplomatique Brasil publica desde agosto de 2021 uma série especial intitulada “A Crise Na Cultura”, que até o momento conta com 22 reportagens de jornalismo investigativo que mostram o impacto da pandemia nos setores culturais. Revela o sofrimento silencioso de trabalhadores que paralisaram suas atividades, receberam promessas de recursos da Lei Aldir Blanc (LAB), mas os benefícios não chegaram para a ampla maioria, que amargou uma crise sem precedentes. Dados obtidos na apuração revelaram a exclusão e indícios de contradições e até irregularidades na aplicação das verbas.

O foco da série de reportagens recai no caso do Paraná,  que teve o terceiro pior resultado na aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc entre 2020 e 2021. Segundo o Ministério do Turismo, 84,91% dos recursos não foram utilizados no estado, ficando ainda, segundo membros da CONSEC (Conselho Estadual de Cultura do Paraná), 80% do que foi gasto concentrado na capital Curitiba em bairros nobres, de acordo com levantamento do Observatório da Cultura do Brasil.

Esta série especial foi feita em parceria entre jornalistas, juristas e especialistas com o Observatório da Cultura do Brasil e Le Monde Diplomatique Brasil. O conteúdo da série equivale a 294 laudas de reportagem investigativa e inédita, considerando o tema polêmico do fomento à cultura no Brasil.

As reportagens partem da observação participante e verificação de documentos enviados pela classe artística para o Fórum de Cultura do Paraná, que recebeu este material. Inicialmente foram feitas entrevistas com lideranças de movimentos culturais, além da análise de documentos (denúncias, protocolos e legislação) que foram obtidos pelo Observatório da Cultura do Brasil para a realização de estudos, aos quais a reportagem obteve acesso.

A reportagem acessou as denúncias, que contam com links para mais de 500 documentos, incluindo dezenas de relatórios e ofícios enviados por entidades ao para a Superintendência- Geral da Cultura do Paraná (hoje Secretaria de Estado da Cultura ) e Fundação Cultural de Curitiba. Os protocolos, ofícios, auditorias e estudos técnicos disponibilizados em links no decorrer das reportagens somam mais de 5 mil páginas de material técnico e jurídico.

Primeiras reportagens expondo o caso de mal uso da Lei Aldir Blanc no Paraná

A série estreou em agosto de 2021, dividida em 6 matérias (iniciais). As primeiras contextualizam o panorama da pandemia no meio cultural, mostrando situações de artistas, espaços culturais e membros das comunidades e de culturas tradicionais que não conseguiram acessar recursos assistenciais, devido a má aplicação da LAB no Paraná e editais com burocracia excessiva, portanto exigências incompatíveis com a emergência.

As demais reportagens iniciais abordaram as diversas profissões da cultura, atividades e regiões do Estado do Paraná que foram ignoradas nos editais, bem  como da dificuldade de acesso aos recursos aos artesãos e povos de culturas tradicionais (como afrodescendentes, quilombolas, indígenas, ciganos), além de outras manifestações de culturas urbanas (como hip-hop). A abordagem elitista e burocrática dos editais teria prejudicado a maioria dos 400 mil trabalhadores do setor do entretenimento no Estado do Paraná. Os recursos também não chegaram aos espaços culturais (Inciso II da LAB) resultando na quebra de infraestrutura de espaços de cultura, eventos e entretenimento.

Ainda nas primeira reportagens foram apresentadas as primeiras denúncias encaminhadas ao Ministério Público, revelando pagamentos de prêmios para conselheiros de cultura, funcionários públicos e membros da comissão de elaboração de edital, além de localizar pedidos de propina por produtores e conselheiros, entre outras irregularidades (esta reportagem divulgou um drive com documentos das apurações). Após a publicação, a Superintendência-geral da Cultura do Paraná pediu um direito de resposta, que foi publicado, contendo informações improcedentes, rebatidas em seguida pelo jornalista e pelo Observatório da Cultura do Brasil.

Desdobramentos da reportagem: denúncia de racismo estrutural e processos administrativos

Em setembro de 2021, uma sétima matéria relatou os desdobramentos ocorridos, apresentando denúncia de racismo estrutural no âmbito da cultura, abertura de processos administrativos para apurar prêmios concedidos indevidamente a funcionários públicos e a vedação desta categoria em editais posteriores às denúncias. No ano seguinte, o tema do racismo estrutural na cultura ganhou reportagem exclusiva dedicada a este tema estudado por Silvio Almeida (atual Ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania), com entrevistas com Zulu Araujo (ex-presidente da Fundação Palmares e atual Secretário Nacional da Cidadania e da Diversidade Cultural do Minc) e diversas lideranças do Movimento Negro.

Balanço da LAB e novas leis para a cultura

No ano de 2022, a série “A Crise da Cultura” teve sequência com três novas reportagens, que trouxeram  um balanço socioeconômico da Lei Aldir Blanc, uma prévia analítica sobre as novas legislações que estavam tramitando no congresso, Lei Paulo Gustavo e Lei Aldir Blanc 2 (contando com depoimentos de Jandira Feghali, autora da LAB2 e relatora da LAB1) e uma matéria com especialistas em políticas culturais fazendo um balanço da aplicação de recursos da Lei Aldir Blanc em 2020 e 2021 (Celio Turino, Humberto Cunha entre outros). Esta última  reportagem teve uma versão ampliada publicada no site Outras Palavras.

Auditoria do Tribunal de Contas do Estado do Paraná

A partir de setembro de 2022, a reportagem teve acesso a um documento precioso: um relatório de auditoria técnica do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) sobre contradições e irregularidades na aplicação da Lei Aldir Blanc pela Superintendência-Geral da Cultura do Paraná (hoje Secretaria de Estado da Cultura). Este é provavelmente o mais completo documento já apresentado no Brasil sobre os problemas internos de um órgão de cultura. O relatório apresenta 15 achados de diferentes tipos de irregularidades, e aponta 26 recomendações sobre como corrigi-las. Este documento data de setembro de 2021, mas não foi divulgado pelo órgão de cultura, vindo a público um ano depois por meio da reportagem, que adquiriu o relatório por meio do próprio TCE-PR.

Este relatório do TCE-PR, conta com 270 páginas constituindo um material rico em detalhes, que possibilitou a realização de 11 novas reportagens até o momento, abordando temas como: os muitos erros localizados em auditoria, que confirmaram a má distribuição regional e erros de gestão e as irregularidades ocorridas na LAB, que revelaram as falhas crônicas em editais culturais, comprovaram a concentração de premiações repetidas, irregulares ou imorais, e promoveram a constatação de que existe o desconhecimento do poder público sobre políticas culturais. Essas reportagens demonstraram o dirigismo, com dados e indicadores dos resultados da política adotada, que são as exclusões de profissões e minorias dentre os beneficiados.

Os achados demonstram o favorecimento de funcionários públicos e agentes influentes que foram premiados em editais que têm pareceres frágeis, e a correlação com a origem dos vícios, na fase da escuta, que é seletiva daqueles que determinam as políticas e são os premiados nos editais, em prejuízo dos detentores de direitos culturais. O resultado é a comprovação de excessiva burocracia contra os populares, enquanto ocorre do outro lado favorecimento e apanágios em favor do campo de influência da capital Curitiba, que controla e promove exclusões contra o restante do estado. São questões que foram alvo de questionamentos vindos da sociedade civil, de que existem falhas na aplicação da Lei Aldir Blanc, que revelam a estrutura histórica excludente das políticas culturais, dentro dos órgãos públicos.

Conclusão:

A série de reportagens “A Crise da Cultura” desmistifica teses de que leis de incentivo são distribuídas apenas para artistas de renome nacional, da mesma forma que não defende que ocorre perfeição nas políticas culturais, que estão repletas de falhas nas gestões públicas. A busca da realidade da situação, por meio da análise documental e jurídica, de auditorias, escuta de especialistas, cruzamento de dados e indicadores revelou que as secretarias de cultura não têm institucionalidade para efetivar políticas culturais, nem normas claras para promover seleção de editais. E que os sistemas de reprodução social, favorecimento de  elites  e exclusões dos que já são excluídos se perpetua.

Até mesmo em tempos de pandemia e emergências, as verbas assistenciais são distribuídas em forma de apanágios para artistas locais próximos de gestões públicas e de gabinetes políticos (indiferente da ideologia). No Paraná, visões meritocrátas e preconceituosas presentes nas ideias de elaboradores das normas resultaram em exclusão de todos os agrupamentos que eram detentores de direitos, mas não eram reconhecidos pelas elites que coordenam as seleções da distribuição das verbas da LAB. Uma enorme injustiça contra os agrupamentos fragilizados, que ainda demandará estudos e justiça social.

Link da série de reportagens: https://diplomatique.org.br/especial/a-crise-da-cultura/

.

Ativistas da Cultura em audiência pública na Assembleia Legislativa do Paraná, 2019:  Foto: Divulgação