Seria o sonho uma utopia?

ColunistadaCultura

Vou me valer novamente de um lapso para propor uma reflexão.

Há um livro do Ailton Krenak chamado “Ideias para adiar o fim do mundo”. Algumas vezes, quando pensava sobre ele ou o usava como referência em uma conversa, me ocorria o seguinte título: “Sonhos para adiar o fim do mundo”.

As produções de Krenak, de fato, me fazem sonhar. Elas trazem uma perspectiva, inauguram um futuro possível. Para além desta representação particular, decidi me deter em outra questão que o lapso me trouxe: afinal, qual seria a relação dos sonhos com o fim do mundo?

A interpretação dos sonhos foi o marco inaugural da clínica psicanalítica. Foi através desta escuta que Freud formalizou uma via de acesso ao inconsciente. O que o interessou particularmente foi o relato do sonho – o que se contava, o que se omitia, as tonalidades e as palavras escolhidas, o que causava estranhamento ao sonhador. Freud entendeu o sonho como uma realização de desejo, desejo este que não poderia atravessar a barreira imposta pela consciência sem alguma deformação. Pôs em destaque o trabalho do sonho – os modos de condensação e deslocamento das representações, impressões que a nossa consciência não processa, não reconhece.

Tomando a outra parte da questão: e o fim do mundo? Recentemente completamos um ano de pandemia no Brasil. Não é incomum escutarmos pessoas se referirem a este período desta forma: tenho a impressão de que o mundo irá acabar/está acabando. Cada vez mais mortes, mais doentes, colapsos no sistema de saúde e funerário, desamparo governamental, desemprego. Parece que o véu que cobria a nossa fragilidade, nossa finitude, tornou-se excessivamente poroso e a vida se revelou, como cantou Caetano, matéria tão fina. O que nos resta de mundo frente a urgência, frente a falta de perspectivas? Faço uma aposta: nos resta a possibilidade de sonhar.

Não faço essa aposta sozinha. Há coletivos de pesquisadores compostos por psicanalistas dedicando-se ao registro dos sonhos neste período: “Sonhos confinados em tempos de pandemia” (um dossiê desse estudo pode ser encontrado na edição 266 da revista Cult) e “Inventário dos Sonhos”. Os relatos, enviados de modo anônimo, já somam mais de 1500 registros. Não é a primeira vez que uma coletânea de sonhos é feita em momentos específicos – e traumáticos – da história: esse tipo de compilado já foi realizado no Brasil com familiares de desaparecidos políticos durante ditadura militar. Há também o livro escrito por Beradt – “Os sonhos no Terceiro Reich”, onde estão registrados alguns sonhos dos prisioneiros dos campos de concentração e extermínio de Auschwitz. Outros cenários de fim do mundo.

Os pesquisadores explicam que não se trata de interpretar os relatos como faríamos na clínica psicanalítica. É importante lembrar que o sonho, ao ser contado para o analista, permite o acesso às inscrições inconscientes do próprio sonhador, desvelando enigmas, trazendo à consciência associações que serão utilizadas como material de trabalho em transferência. O registro coletivo dos sonhos tem como função estabelecer uma marcação do tempo e constituir uma espécie de memorial: “A experiência do sonhar abre espaços para que possamos ensaiar novas linguagens e construir novas narrativas, sobretudo quando estamos confrontados com situações traumáticas extremas e continuadas”.

As narrativas, portanto, possibilitam o acesso a uma outra cena que emerge do material recalcado do sonhante mas que tampouco está destituída do entorno: desde Freud sabemos que um dos pontos constitutivos dos sonhos são os restos diurnos. Eles consistem justamente naquilo que percebemos durante o dia e não processamos ou elaboramos conscientemente.

Pesquisas recentes demonstram que houve, desde o início da pandemia, um aumento da venda de medicamentos indutores do sono. Dormimos pior, no entanto, temos sonhado mais.

O próprio Freud destacou que o sonho detém a função de guardar o sono, uma forma de cuidado do nosso aparelho psíquico: “(…) ele também cria figurabilidades ante pulsões, afetos, traumas e situações que ultrapassem as possibilidades perlaborativas da consciência. Sonhar é criar imagens, futuros, projetar saídas, reencenar desastres”. É uma possibilidade de sair do confinamento. Os conteúdos presentes nos relatos são bastante variáveis: alguns giram em torno de catástrofes – enchentes, terremotos –; em outros, o sonhante se transporta para ambientes de períodos anteriores da sua vida – a casa da infância, a escola do ensino médio, a cidade onde os avós viviam. O ambiente onírico permite uma excursão pela temporalidade, um passeio onde o tempo não institui modos de estar.

O relato das experiências que vivemos enquanto dormimos permitem associações que possibilitam aberturas, fazendo emergir o que estava latente, inacessível ao reconhecimento do narrador. Trata-se de uma experiência de construção que atravessa os registros, inaugurando novos possíveis – aquilo que não nos permitimos pensar na vida em vigília nos é revelado ou encenado durante a experiência de sonhar.

O novo me leva ao último termo – a utopia – ideia que encontrei nas articulações do psicanalista Edson Luiz André de Sousa. Ela aponta para a ativação do desejo, uma desnaturalização da realidade que se impõe como dada. Não se trata de uma simetria com o mundo externo, tampouco da intenção de uma realização: trata-se da instalação de um horizonte, propondo a interrupção do presente, um contrafluxo – “um devir à deriva”, como diz o autor.

O ato utópico relaciona-se ao ato criativo, uma produção singular. Introduz a possibilidade de um novo lampejo, uma outra fresta para o olhar, uma mostra efêmera e pulsante. É justamente nessa fresta que pode se enunciar o enigma do desejo. O autor define a utopia como “(…) Um convite a não tomar as formas de vida que se apresentam como definitivas, irreversíveis e naturais”.

Sonho e utopia lançam o convite para a leitura de um outro texto – que remete ao singular mas não só, traz ecos do tempo que se vive. Ambos brincam com o tempo: Freud institui que há um trabalho regressivo na atividade do sonhar; já a utopia, convida a pensar um mais-além.

Este mais-além – que também poderia ser chamado de só-depois – é uma ideia bastante íntima dos manejos psicanalíticos: entendemos, desde a constituição psíquica, que se faz necessária uma antecipação do sujeito para que ele venha a se constituir e possa responder desde esse lugar. O desejo, em sua característica de metonímia, desliza na cadeia pedindo sempre mais uma palavra, mais um significante. Quando encerramos uma sessão de análise e dizemos algo como: “continuamos na próxima” também fazemos uma aposta no porvir. Parece que nós analistas também nos autorizamos a brincar com o tempo.

E assim, em movimento, entre o avanço e o retorno, retomo ao meu ponto de partida: o meu lapso. É Krenak que condensa tudo que tentei dizer: “E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”.