Personagem dos mais notáveis da história do Brasil, baiano teve vida e carreira marcada por altos e baixos, e já foi símbolo máximo da inteligência nacional
Todo mundo que tem mais de 40 anos já ouviu alguém da família, em algum momento, observar que “ele foi o homem mais inteligente do Brasil”. Não era raro meu avô, político, conservador, vereador pela Arena, citar seus feitos para os netos que lhe constituíam plateia, no chão da varanda da fazenda, em gargarejo.
“Ele deu aulas de inglês nos Estados Unidos!”. Ou “aos dez anos já recitava Camões!”. A mais impressionante: “aos 14 anos de idade aprendeu alemão!”. “Já lia aos cinco anos!”. E era tudo verdade.
À boca pequena, uma biografia carregada de descontextualização, mas cercada de verdades absolutas. De fato, este que vos escreve e seus companheiros de geração somos de um tempo no qual “Rui Barbosa era o homem mais inteligente do Brasil”, como dizia vovô. Nós acreditávamos, é claro, antes de nos distrairmos em brincadeiras rurais diversas, naqueles tempos de férias no qual absoluta era a diversão, no norte do Paraná. Como absoluta era a palavra do vô.
Rui Barbosa nasceu em Salvador, Bahia, em 1849. Filho de um médico e deputado provincial, diretor da Instrução Pública da Bahia — João José Barbosa de Oliveira. Sua mãe era Maria Adélia Barbosa de Oliveira.
Com cinco anos, o pequeno Rui foi para a escola e em poucos dias já sabia ler e conjugar verbos. Era atencioso aluno de piano e oratória, em casa, com professores os mais afamados e ilustres do Recôncavo. Reza que foi criança triste, sobrecarregada de tarefas, que vivia sob a austeridade familiar. Ler os clássicos portugueses, por exemplo, era algo imposto pelos pais. Daí que aos dez anos já sabia Camões de cor e salteado.
Ingressou no Ginásio Baiano em 1864. Concluiu o curso em primeiro lugar. Recebeu medalha de ouro, e consequentemente proferiu seu primeiro discurso em público. Após o curso de humanidades, era comum aos homens daquela época o ingresso na faculdade de Direito. Mas Rui Barbosa contava apenas 14 anos, e a instituição não o aceitou, pela idade. Na falta do que fazer, adentrou seus 15 anos de idade estudando alemão, enquanto devorava os livros de obras médicas e principalmente autores juristas, na biblioteca do pai. Era também poetinha de versos tristes, o imberbe Rui.
Em 1866, acabou matriculando-se na Faculdade de Direito do Recife, a mais conceituada de então. Como estudante, participou da Associação Acadêmica Abolicionista, através da qual teve grande conflito com um professor. Devido ao atrito com o mestre, foi obrigado a terminar o curso na mitológica Universidade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Graduou-se em 1870. Diz-se que sentia dores de cabeça e vertigens na terra da garoa, o que resultou em sua volta para a Bahia.
Seu pai, envolvido em política, uma hora perdeu o emprego. Rui foi trabalhar com Manuel Pinto de Souza Dantas, no Diário da Bahia. No jornalismo, desenvolveu grande amizade com Rodolfo Dantas, filho de seu patrão. Foi convidado a ir à Europa com os Dantas. A viagem fez bem a sua saúde, que o faz retomar o ímpeto político dos tempos de faculdade.
Momentos trágicos vieram, entretanto, após a edificante viagem. Rui perde o pai e a namorada, Maria Rosa, em um curto período, o que o faz entregar-se ao trabalho de maneira sagaz. Assume a direção do Diário da Bahia e logo em seguida é nomeado pelo conselheiro Manuel Dantas para o cargo de secretário da Santa Casa de Misericórdia. O jovem Rui Barbosa tinha agora um cargo público, e um jornal sob sua égide. Era o início de uma lenda sem igual na história do país.
Membro do Partido Liberal, passa a defender eleições diretas, liberdade religiosa e regime federativo. Realiza comícios em praça pública e torna-se arauto do liberalismo, em pleno Império.
Enamorava-se, no entanto, o jovem jurista e jornalista, também um cavalheiro de notável e fina estampa. Em 1876, após contenda com o amigo Rodolfo pelo coração de Maria Augusta Viana Bandeira, Rui acaba casado com a donzela.
Ingressou na Câmara Baiana em 1877 e no ano seguinte no Parlamento do Império. Na Côrte, em pleno Rio de Janeiro, empreende campanha ainda mais enfática pela reforma eleitoral, pela reforma do ensino e pela libertação dos escravos sexagenários. Fazendeiros escravagistas contrapõem-se a Rui Barbosa em campanha contra o abolicionismo e o baiano acaba não reeleito.
Após a abolição da escravatura que acabara vitoriosa apenas em 1888, em meio ao declínio do Império e o fervor pela república, Rui Barbosa retorna ao jornalismo justamente no início do ano fundamental de 1889. Vira redator chefe do Diário de Notícias. Afasta-se do Partido Liberal (não confundir, por favor, cof cof…) quando inicia uma luta pela implantação do regime federativo.
Já sob Deodoro, tornou-se Ministro da Fazenda. E aí começa aquilo que podemos chamar como “descambo” na carreira do iminente intelectual, jurista, jornalista e político. Dois fatos marcam sua passagem pelo governo: a Constituição de 1891, quase toda de sua autoria, e o “encilhamento” — uma espécie de emissão descontrolada de papel moeda, tudo aquilo que (hoje) sabe-se imprudente. Seguiu-se crise e inflação, Rui Barbosa acaba deixando o governo. Maldito, enfim, o bom baiano.
Mas um novo verniz pincelado sobre o personagem começa a fazer efeito quando Rui assume a direção do Jornal do Brasil, veículo no qual combateu violentamente o governo de Floriano. Talvez o ditador mais cruel da história. Em 1893, eclodiu a Revolta da Armada. Mesmo sem ligação com o movimento, foi acusado de apoiá-lo e obrigado a exilar-se na Inglaterra.
Atenção aqui! Foi neste período o qual deu aulas de inglês para estrangeiros — não para anglo-saxões, é claro — e não nos EUA, como declarava meu avô, e os avós dos outros também. Faz parte.
Retorna do exílio em 1895, assume cadeira no Senado e inicia luta por anistia aos punidos por Floriano. Inicia aqui um período perene em sua vida. Com tudo caminhando de forma relativamente calma, até para um expoente da conjuntura nos primórdios da República, que devia ser um inferno. A coisa anda.
O tempo salta para 1907, durante o governo de Afonso Pena, quando Rui Barbosa alcançou status de celebridade mundial ao representar o Brasil na Conferência de Haia, que reuniu as grandes personalidades da diplomacia do planeta.
Eis aqui um detalhe ainda não relatado nesta crônica de viagem no tempo: Rui Barbosa media apenas 1,58 de altura, e pesava 48kg. Adentrou o salão de conferências solenemente e impressionou a todos pela baixa estatura. O grande tema em Haia era a criação de uma corte permanente de justiça. A lenda diz que o baiano discursou por cinco intermináveis horas. Atacou ferozmente a classificação dos países pela sua força militar e — a despeito de ter sido considerado um “mala” por boa parte da diplomacia ali representada — conquistou o respeito das nações.
Anão diplomático? Não. Ganhou a alcunha de “Águia de Haia”. Sua volta ao Brasil foi marcada por festas e honrarias. Recebeu de Afonso Pena uma medalha de ouro.
Lançado candidato à presidência da república em 1909, o escolhido acabou sendo o marechal Hermes da Fonseca. Em 1919, o nome de Rui Barbosa surgiu com fortes possibilidades de ser indicado pelo Partido Republicano, mas Rui se recusou a comparecer à convenção. Epitácio Pessoa, paraibano apoiado pela política do “café com leite” recém-adotada por São Paulo e Minas, venceu com 139 votos. Rui, mesmo ausente, recebeu 42 votos.
Rui Barbosa faleceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, para onde foi se convalescer de uma pneumonia, em março de 1923. Foi sepultado em Salvador, Bahia, na galeria subterrânea do Palácio da Justiça – hoje o Fórum Rui Barbosa.
Ufa! Que vida!
Diversas ruas, avenidas e praças do país levam seu nome. E há muitos “ruis barbosas” por aí: a atriz Mariana, o dramaturgo Benedito, entre outros, todos descendentes do baiano, de alguma forma. A Fundação Casa de Rui Barbosa, em Botafogo no Rio, é vinculada ao Ministério da Cultura. Situa-se na casa onde viveu o intelectual, no número 134 da rua São Clemente. Atualmente é destinada a pesquisas sobre seu patrono. Faz parte do complexo um museu com mobiliários, bem como a biblioteca que pertencia ao jurista, um colosso de 35 mil volumes.
Independentemente das descontextualizações de praxe, da carreira política que sempre deixa manchas, das besteiras como ministro da Fazenda, e dos exageros de meu avô, e dos avós de todos de minha geração, não é possível passar em branco por Rui Barbosa. Um personagem absolutamente sui generis.
Aqui retorna o menino sentado com os primos e irmãos no chão da varanda da fazenda, atencioso à fala solene do vô, repousado em sua cadeira de balanço, também baiano, como o personagem do qual falava com orgulho, olhos verdes atentos a um horizonte de Brasil que ele sonhou como poucos. Eis o que mais importa. Da vida a gente leva as boas lembranças. E as de infância são as melhores.
Afinal, Rui Barbosa foi o Rui Barbosa dos Ruis Barbosas.
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Ouça. Leia. Assista:
Fundação Casa de Rui Barbosa – site
A Vida de Rui Barbosa, por Luiz Viana Filho – Estante Virtual
Tempo e História – Rui Barbosa – Doc da TV Justiça
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Imagens: reprodução