Era uma manhã de agosto. As cerejeiras da Praça do Japão enchiam os olhos de quem por ali passasse com suas flores lilases incrivelmente alegres. O contraste com o céu azul era algo de uma beleza que remetia ao paraíso. A paisagem dessa praça é uma das mais belas da cidade que me adotou. Eu estava sentada num banco, havia, pelo menos, umas duas horas.
Pilhas de processos me esperavam no escritório e eu ali, sentada sem poder me mover do lugar, com minha sacola de ecografias na mão. Seis meses de indução de ovulação. Seis ciclos de frustração. E a verdade dita da forma nua, crua, realista e dolorosa: “Olha, você já fez seis ciclos de ovulação. Tem ovários policísticos. Seus hormônios já mostram o início de uma menopausa. Um conselho: cuidado, você está danificando os seus ovários. É preciso saber a hora de abandonar o tratamento.”
Tratamentos de fertilidade são cruéis e por tantas experiências negativas de casais conhecidos, decidimos que o Toni faria os exames e eu meu sentia mais confortável em estar sozinha nas consultas do especialista de infertilidade, já que o problema era comigo. Foram tempos difíceis. Pouquíssimas pessoas tinham o conhecimento de que nós enfrentaríamos um extenso tratamento. Uma condição negligenciada por muitos anos me colocou numa situação bastante complexa.
Quem namora por longos anos, sabe que logo depois do casamento começam as cobranças sociais das pessoas indiscretas, abelhudas, daquelas que querem puxar papo ou fazer uma piadinha de mau gosto. Se está solteira, tem que arrumar um namorado, se namora tem que casar logo senão fica velha e o pretendente arruma uma mulher mais jovem. Casou-se? Tem que logo arrumar um filho, se tem um tem que logo vir um segundinho, senão o primeiro fica mimado. Experimente ter mais de dois filhos… Também experimentará julgamentos variados…
Aos 36 anos, aqueles folículos eram a minha última tentativa. Eram três, estavam indo bem, mas não amadureceram. Naquela linda manhã, após ouvir aquele conselho médico que embora doloroso, foi cheio de afeto, oficialmente decidi que era a hora de parar com os tratamentos. Estava realmente muito cansada. A quantidade de hormônios que eu tinha enfiado no meu corpo nos últimos seis meses tinha detonado minha saúde física e a ansiedade, minha saúde mental.
Naquele dia, fui para aquele controle de ovulação com meu coração cheio de esperança. Saí de lá como se um caminhão tivesse me atropelado. Era o caminhão da vida, o caminhão do tempo, aparentemente, o caminhão das minhas escolhas até então.
Chorei muito. Engoli esse pranto que se transformou num veneno. Fiquei de uma maneira que me envergonha profundamente até hoje, doze anos depois. A amargura me dominou por completo. Eu tenho um diário daquela época, onde fazia minhas anotações. Tem coisas terríveis escritas ali. No dia 22/08/2012 eu escrevi:
“Hoje as coisas não estão muito animadoras. Fui fazer controle e o que ouvi me deixou triste. Desistir é uma palavra que nunca esteve no meu vocabulário, mas para isso sempre precisei do mínimo que fosse de resultado. Não tenho visto. Parece que estou andando em uma esteira e pretendendo chegar ao Japão. Tá complicado manter o controle, o ânimo, a alegria. Tenho que me esforçar porque, afinal, ninguém tem culpa, embora seja um hábito da minha educação procurar um culpado para tudo, jogar neste culpado as causas da frustração e achar um motivo para as coisas serem como são. Não poder arrumar um responsável pelo insucesso machuca e eu estou machucada. Não sabia para que lado andar. É um “bullying” com as mulheres em tratamento de infertilidade ser colocadas com as gestantes na mesma sala de exames. Não pensam que aquela alegria parece, para nós, uma agressão. É como esfregar na nossa cara, aquilo que não somos. O ânimo se esvaiu. Não sei mais o que posso fazer. Será que eu continuo com isso? Será que me conformo e paro? Não sei o que Deus quer de mim, francamente. Não quero sofrer por causa disso além da conta. Não quero que afete outras pessoas. Não quero que ninguém veja. Estou cansada.”
Abrindo um parêntese, fiz uma reclamação na clínica que eu costumava fazer meus exames na época. Recentemente fui fazer um exame de rotina e as gestantes, atualmente, fazem seus exames em um ambiente especial. Importante lembrar que muito recentemente, foi sancionada a Lei do Luto Parental, que sensibiliza os serviços de saúde para as perdas gestacionais.
Depois de chorar duas horas na praça, meia no telefone no ouvido do Toni, seis no trabalho e mais umas quatro em casa, encerrei aquele dia com o relato. Estava mesmo esgotada.
Passei a evitar gestantes, desgostar de ir a festas de criança. Quando ficava sabendo de uma gravidez nos meus círculos sociais eu passava a evitar a pessoa. Era infinitamente mais forte do que eu e por mais que tentasse me esforçar para não agir assim, era impossível. Acabei me isolando a ponto de só socializar por redes sociais numa alegria e satisfação um tanto enganosas.
Certa vez caí no choro dentro de uma livraria ao folhear uma revista. Entrevistas de várias mulheres. Algumas delas cercadas de filhos e netos. Outras aparentando tão solitárias. Aquilo me fez sentir saudade do futuro. Estranho, né? Mas era exatamente esse meu sentimento. Não julguei se aquela pessoa era ou não feliz assim, mas eu me coloquei naquele retrato e para mim, não seria felicidade.
Lembrei desse sentimento, porque, se o milagre não se operasse na minha vida, talvez eu passasse o resto dessa existência me sentido dessa forma: injustiçada por não poder ter um filho da barriga, perdida por não poder ser, biologicamente mãe. Afetivamente eu era uma mãe muito feliz, mas esse é um tema para outro dia…E está tudo bem que uma pessoa escolha não viver essa experiência, mas existe uma diferença muito grande entre não querer e não poder. Isso era o que me matava um pouco por dia.
Mas eu como mulher, sobrevivi. Nós, como casal sobrevivemos. E como uma família, nos reinventamos. Como todos sabem, sou a orgulhosa mãe de uma pré-adolê muito batuta de franjinha (atualmente) azulada!
Mesmo diante de toda a euforia que foi desde o dia que nos soubemos grávidos e hoje quase doze anos depois, a lembrança daquele fatídico dia me vem sempre por solidariedade. Era um aniversário de criança. Três primas. Uma grávida de seu primeiro bebê, a outra mãe de uma menina e esperando um menino e uma casada há alguns anos, sem filhos e que eu sabia, tinha questões como as minhas, pois frequentávamos a mesma clínica.
Como numa comédia daquelas sobre maternidade, a gestante do primeiro não parava de falar como foi fácil engravidar. Bastou parar com a pílula e logo estava grávida. Que jamais enjoava ou se sentia indisposta, sobre o enxoval em preparação e todos os detalhes sobre movimentos do bebê. A mãe de dois repassava todas as suas gestações e a conversa girava em torno disso.
Criança para lá, criança para cá… Gonadotrofina Coriônica pairando no ar e uma infeliz teve a ideia de perguntar: “e você, Fulana, quando é que vai resolver ter um nenê? Daqui a pouco vai ficar velha!” Mais infeliz ainda foi a sogra que soltou aos quatro ventos: “a Fulana não tem mais útero.” E se fez um enorme silêncio.
Naquele momento, aquela mulher que já estava ali, muito contrariada, o que era evidente, num canto, encolhida, torcendo para não ser notada, se esforçando para não demonstrar seu dissabor, apenas levantou o olhar que dizia: “porquê falar isso?” Respirou fundo, sorriu, mas sua vontade era de gritar. E eu gritei por ela. Aqueles berros com um assunto aleatório cheio de panos quentes mudando o tema da conversa completamente. Felizmente, a cunhada dela percebeu e a chamou para mostrar alguma coisa, tirando ela daquele círculo da crueldade.
Imediatamente veio a memória de que eu já estive naquele lugar. Se acontecesse comigo, o que eu faria? Talvez dissesse que não queria estar ali. Que eu não queria ouvir toda aquela conversa, justamente porque aquilo tudo fazia sangrar a minha ferida mais profunda. Que eu estava ali somente por consideração ao casal de amigos e que preferiria estar em qualquer lugar do mundo em que não estivesse cercada de mães e gestantes.
Obrigada a me controlar, a camuflar, a sorrir, disfarçar, para ao final, ver revelado ao mundo, aquilo que eu me negava a contar para mim mesma, de que jamais poderia realizar aquilo que, intimamente sempre desejei: gerar. Que não haveria para mim, bracinhos fofinhos, mãozinhas meladas, nem beijos babados.
Quantas vezes me senti assim. Quantas vezes fugi desse tipo de pergunta. Quantas vezes ouvi que estava envelhecendo que por isso corria risco de eclâmpsia, de diabetes gestacional, de síndromes diversas em virtude da minha idade. Que já não era tempo. Como se isso pudesse fazer com que eu desejasse ou amasse menos a ideia de gerar uma criança.
Quantas vezes fui praticamente acusada de priorizar minha carreira, priorizar a minha “tranquilidade” evitando filhos. Quantos dedos vi apontados para mim, enquanto sofria calada com a criança que não vinha e com a esperança que morria um pouco por dia, de ela vir.
Ouvi muito “não pode ter, adote”, como se isso fosse fácil. Não que rejeitasse a ideia, mas geralmente, adotar requer muita preparação e diálogo, ademais, como advogada, conheço perfeitamente as dificuldades de se passar por esse processo. Eu não conseguia racionalizar. Eu estava sofrendo.
Não posso dizer que todas as mulheres que vivenciam essa situação, lidam com o assunto de forma semelhante. Talvez exista muito mais maturidade no mundo do que eu possa supor, mas era exatamente assim que eu me sentia e o momento em que vi aquela mulher ali, exposta, foi impossível não acessar as minhas memórias.
O fato é que diante de uma notícia dessas a gente se prepara para um futuro que não desejávamos, mas que é o futuro possível. Um mundo sem a criança que tanto desejava poder esperar. Uma vida sem a sensação da barriga crescendo, sem os enjoos, sem os pés de broa, sem a cara de bolacha, sem levantar a cada duas horas para fazer xixi. Sem as alegrias que eu só ouviria contar que existiam… Era a minha caixinha do desconhecido.
Tentei me isolar da expectativa desse encontro com a criança que sonhamos ter e passei a tentar encontrar outras coisas. Convencida de que minha criança não viria, eu mudei a direção dos meus planos, mudei o centro das atenções. Um dia eu acordei de manhã e aquele vazio tinha ido embora, sem mais, sem explicação nenhuma. Já podia passar na Praça do Japão e encarar novamente as cerejeiras. Aquela coisa ruim que eu sentia quando passava por aquele lugar tinha ido embora e eu parei de procurar respostas para a minha infertilidade. Um dia, eu voltei a olhar para a frente.
E depois de um tempo, que não foi muito longo após o retorno da paz, no dia do aniversário do Toni, Isabel se anunciou como um presente. Sem anúncio, sem esforço, eu estava preenchida com a vida mais preciosa do universo todinho. Ela estava a caminho.
No dia 22 de agosto de 2012 eu vivi o pior dia da minha vida e entreguei nas mãos de Deus, do Universo, do destino, algo que vi que não estava ao meu alcance resolver. No dia 24 de agosto de 2013, às 7:37 minutos, pegamos Isabel em nossos braços. Eu, anestesiada senti nos meus lábios a testa dela, nos braços do pai dela, que é a melhor pessoa do mundo. O cheiro e o calor, bastou fechar os olhos e invocar, eu posso novamente, sentir, nesse instante.
Um filho ou uma filha poderá entrar na vida da gente de várias formas. Pode vir do amor que seremos capazes de cultivar por qualquer coisa que nos devolva a alegria. A dor um dia passa. O vazio um dia, se vai. Mas é inconteste o direito de viver o luto do filho que não virá, ou até que ele venha. Existe o direito de sofrer, chorar, se isolar, porque isso faz parte do processo de recomeço, de reencontro. Um ano e dois dias, foi o que me separou do pior e do melhor dia da minha vida e todos os anos, as cerejeiras estarão lá, na Praça do Japão para me lembrar disso!
