Durante o exílio em Roma, gênios brasileiro e italiano se encontraram para a gravação de coletânea de canções de Chico em italiano. O álbum é uma raridade
Com o advento do AI-5 em dezembro de 1968, Chico Buarque e Marieta Severo — grávida de sua primeira filha, Silvia — resolveram deixar o país em uma espécie de autoexílio, em janeiro de 1969. Foram a Roma, onde Chico já havia vivido entre 1952-54, ainda criança, por ocorrência de ofício de seu pai, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda, na Universidade de Roma.
Aterrissam na Cidade Eterna sem nenhuma perspectiva de futuro, pois Chico escolhera a capital italiana por afinidade, apenas — algumas dicas de Vinicius de Moraes, que servira ao Itamaraty em Roma no período em que o professor Buarque de Hollanda lá esteve, sendo frequentador da casa e amigo da família, e do infante Francisco.
Uma carta de Caetano Veloso (exilado em Londres) advertiu Chico: “o tenente amigo falou pra você nem pensar em voltar”. O casal se estabeleceu então. E os 14 meses que passariam lá, além das partidas de futebol de salão engrossando as fileiras da equipe de Gianni Morandi (cantor), e as “peladas de corredor” na RCA Italiana, com bolas de papel e tendo Toquinho como oponente, Chico também produziu bastante. Com o parceiro e a “supervisão” de Vinicius cometeu o Samba de Orly — em que pese ter sido escrito em Roma. Uma bonita alusão ao exílio, para o qual aeroporto francês era mais significativo e simbólico.
Rotativa ruota gigante
Ruota motore ruota che va
Un’ora un minuto un istante
Ti butta di qua poi di là
Escreveu para o Pasquim, compôs ainda Samba e Amor, Apesar de Você e Agora Falando Sério. Sem dinheiro, precisou pedir um caraminguá emprestado ao amigo Toquinho. Tocava a vida como podia, se distraindo com o futebol de botão e ajudando Marieta a cuidar da recém-nascida Silvinha. Até que a RCA resolveu acionar um de seus contratados mais ilustres.
As mesas diretoras da filial italiana da multinacional propuseram a Chico que ele fizesse um LP com um apanhado de suas canções mais conhecidas. Só que cantadas em italiano. E os arranjos ficariam a cargo de ninguém menos que Ennio Morricone. O maestro de nove entre dez trilhas sonoras do cinema carcamano, inventor do clímax definitivo de faroeste, muito especialmente os western spaghetti, dirigidos por Sergio Leone. Um peso pesado já àquela época. E jogando em casa, afinal Roma é o berço da Cinecittá, que gerou filhos diletos que iam de gênios diretores como Fellini e Pasolini, a estrelas do feitio de Marcelo Mastroiani e Sophia Loren.
Morricone trabalhava como arranjador da RCA desde 1955, ao passo e tempo que também revolucionava a atmosfera da sétima arte, teve em seu currículo álbuns que consagraram Nico Fiodenco, Gianni Meccia, Rita Pavone, Jimmy Fontana e o parceiro de peladas de Chico: Gianni Morandi. O filme que consagrou Morricone como mestre definitivo da banda sonora para cinema havia sido rodado há alguns anos, o faroeste Por um Punhado de Dólares (Sergio Leone, 1964). Alguém teve a ideia engraçadinha de nomear o disco: Per um Pugno di Samba (por um punhado de samba).
Vertidos à primogênita das línguas latinas pelo próprio Chico, com auxílio de Vinicius e amigos, Roda Viva virou Rotativa. Completaram o álbum ainda outras onze canções, com destaque para Samba e Amore, Sogno di um Carnevale e Queste e Quelle (umas e outras).
Ennio Morricone, um admirador confesso da música brasileira — especialmente depois do sucesso avassalador da bossa nova em todo o mundo — provavelmente não sabia que estava lidando com um dos maiores expoentes e gênios desse gênero que ele tanto admirava. O nome Chico Buarque ainda era anônimo na Itália. Assim, o maestro assina o disco com seu nome colocado junto ao de Chico na capa quem sabe numa tentativa de melhorar o desempenho comercial. Mas o álbum não foi lá muito bem-sucedido.
E como tudo que é cantado em italiano que não seja ópera é tido como horroroso — a menos que você seja italiano —, o disco não teve repercussão alguma no Brasil. É alvo de colecionadores com seu valor a peso de ouro nos dias de hoje, entretanto.
Chico e Marieta desembarcaram no Galeão em março de 1970. Lá, ainda que não soubesse, um outro maestro o esperava para uma verdadeira mudança de rumos que viria coisa de um ano depois. Rogério Duprat já estava em Construção.
Mas antes Chico foi jogar bola, é claro.
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Ouça. Leia. Assista:
Per um Pugno di Samba – Chico Buarque-Ennio Morricone
Imagens: reprodução