A sétima arte já contava 27 anos de sua primeira projeção quando o Teatro Municipal recebeu a Semana de Arte Moderna, mas não houve um filme sequer incluso nas atividades
Mario de Andrade era um ativo frequentador de salas de projeção, onde distraía-se assistindo “fitas”. Estava bastante interessado em Robert Wiene (O Gabinete do Doutor Caligari, 1920) e Charles Chaplin (O Garoto, 1921), entre outros sobre os quais viria inclusive a escrever resenhas na revista Klaxon, uma espécie de porta-voz para as ideias dos modernistas.
Para antes e depois da Semana de Arte Moderna — cujos desdobramentos tornariam Mario e alguns de seus pares símbolos maiores da vanguarda estética brasileira — o cinema foi importante.
Se era dentre todas a arte mais moderna e inovadora que se tinha notícia então, por que nenhum filme foi projetado durante os eventos que marcaram a Semana de 1922?
A resposta é simples. No período, quando o cinema tinha apenas 27 anos desde sua invenção pelos irmãos Lumiére, a “produção” nacional consistia apenas de coleções extremamente caseiras, de registros familiares, ou — mais avançados — pequenos dramas e comédias ainda com feitio bastante amador, ou melhor: de insuficiência profissional.
Também era feita — daí sim modernamente — alguma propaganda. Mas nada que fosse uníssono ao coro estético de Mário, Oswald e os membros da Semana, realizada em fevereiro de 1922.
Modernistas de fato (mas não de “direito”, já que nunca citados) do cinema viriam um pouco mais tarde, daí com méritos inegáveis: São Paulo – Sinfonia de uma Metrópole (1929), dirigido pela dupla Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig; e Limite, cultuado clássico de Mário Peixoto, realizado em 1931.
Na miríade de revisitas e revisionismos acerca da importância da Semana de 22, é importante notar que o cinema foi responsável por unir — inadvertida e postumamente, em décadas seguintes — antagonismos entre a empresa inicial do modernismo e aquela que ficou conhecida como “segunda geração”.
Graciliano Ramos, por exemplo, era um detrator da Semana. Foi, entretanto, um dos autores mais revisitados pelo Cinema Novo décadas depois. Destaque para Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1964). Movimento este que foi o que mais bebeu na fonte dos primeiros modernistas, estes por sua vez criticados nos anos 1930 pelo autor alagoano.
Soa irônico ainda que a radicalidade modernista do Cinema Novo, que viria somente nos anos 1960 com Terra em Transe (1967) de Glauber Rocha e a adaptação de Macunaíma por Joaquim Pedro de Andrade (1968), tenha chegado aos olhos do público após uma espécie de “ensaio” professado coisa de uma década antes por Nelson Pereira dos Santos com Rio 40 Graus (1955), de fortíssima inspiração social, e alicerce estético no neorrealismo italiano.
O crítico Luiz Zanin Oricchio escreveu para o Estadão dia desses que “se a liberdade artística e a agenda nacionalista do Modernismo caem à perfeição no ambiente insurgente dos anos 1960 no qual o Cinema Novo se forma, também é verdade que o realismo crítico dos grandes romances ditos neorrealistas se ajusta muito bem ao programa estético-político dos cinemanovistas”.
Além do quê, já era notável a linguagem fragmentada de viés bastante cinematográfico em obras como os romances João Miramar (1924) e Macunaíma (1928) de Oswald e Mario de Andrade respectivamente.
Sendo Mario um solitário frequentador de “fitas” pela região central de São Paulo, que já contava com pelo menos duas dezenas de salas nos anos 1920, e Oswald um dândi dado a passeios pela Europa, onde observou toda novidade que o cinema representava, por certo receberiam a “oferenda” e dariam em troca o tributo necessário. Mesmo que não pareça ideal, medida agora com uma régua de 100 anos e alguns milhares de pixels depois.
Nada é consenso acerca da Semana22, neste seu centenário. Sendo nacionalista, a Semana desprezou o carnaval, mesmo realizada duas semanas antes das folias de Momo. Sendo moderna, não teve cinema. O carnaval veio com o Rei da Vela de Oswald, montada no teatro Oficina por Zé Celso, somente em 1967, quando o autor já era morto e esquecido.
O cinema já estava embutido na Semana22, como o Cinema Novo pôde comprovar depois. Era uma clara questão de relevância. A mesma que se questiona (hoje) quanto à Semana (à época). Se houve de fato repercussão, ou não. Se fora de fato importante. Pelo andar da carruagem, não saberemos ao certo. Mas é fato que cada vez mais se fala dela. Em tempos de cliques, dizem que isso importa.
Bom lembrar que a fotografia também ficou de fora da Semana22. Ao que parece, ela ainda está sendo batida.
Sem luz ou câmera, não faltou ação.
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Ouça. Leia. Assista:
São Paulo – Sinfonia da Metrópole (1929)
Limite (1931)
Macunaíma (1969)
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Imagens: reprodução