Mais uns 10 minutos e voilà, Paris!, única escala internacional daquele voo que saiu do Rio de Janeiro com destino a Londres. Mas não haveria Londres.
Pense numa viagem tranquila. O estudante e roqueiro Ricardo Trajano tirou de letra a missão quase impossível de ficar 11 horas sentado em um avião quando se tem quase 2 metros de altura. Porque o esforço valia. Já devidamente curada da ressaca pela dissolução dos Beatles, Londres tinha se tornado a meca do rock no mundo, e ele juntou cada centavo que pôde para comprar a passagem. Era sua primeira vez em um avião. Depois de tanta gente dizer que a cauda da aeronave é sempre a parte mais preservada num acidente aéreo, Ricardo reservou o assento 27. Atrás dele, só a fileira reservada para a tripulação extra. O famosão simpático também deve saber disso, pensou Ricardo ao ver o cantor sentar-se na poltrona bem em frente à sua. O que ele está cantarolando baixinho? Sei lá, não sou de ouvir música brasileira.
Os procedimentos para o pouso seriam iniciados em instantes. Será que dá tempo para uma chegadinha no banheiro? Uma passageira achou que dava, mas quando abriu a porta desistiu, tanta fumaça havia no cubículo. Um comissário correu apagar o fogo. Depois outro. Acompanhando a movimentação de perto, Ricardo começou desconfiou que o negócio não era tão simples, então desatou o cinto e se mandou para a parte da frente. Mesmo levando uma bronca do comissário-chefe, se postou junto ao cockpit dos pilotos e lá ficou. Rapidamente, a fumaça antes branca pretejou, adensou e invadiu a cabine dos passageiros. Entre a descoberta do incêndio e o estrondo pavoroso no momento do pouso forçado sobre uma plantação de cebolas, passaram-se quatro minutos. Dos 17 tripulantes, sobreviveram dez. Entre os corpos dos 117 passageiros, apenas um apresentava sinais de vida. Quase três meses depois, incluindo aí um período em coma, Ricardo Trajano finalmente saiu do hospital.
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Não levam! Não levam! Não levam! Quando a notícia de rejeição do habeas-corpus pelo STF chegou à Casa de Detenção da rua Frei Caneca, os presos iniciaram uma rebelião. Arrancaram portas de celas, bateram canecas no chão, quebraram camas, gritaram em coro. Depois de 24 horas de tensão, foi aceita uma proposta de trégua: a prisioneira seria levada para fazer exames em um hospital. Detida ali desde fevereiro, Olga Benário, alemã de origem judaica e militante comunista, grávida de sete meses, nunca esteve em um hospital. Naquela noite de 23 de setembro de 1936, esperava atracado no porto um cargueiro com o nome La Coruña pintado no casco, fretado especialmente para receber Olga e levá-la direto para Hamburgo, na Alemanha. Apesar do nome espanhol, a bandeira que tremulava no mastro principal não deixava dúvidas. No centro dela, via-se a suástica. Aquele navio estava a serviço de Adolf Hitler.
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– Desculpe incomodar, mas hoje é meu aniversário. Será que ganho um autógrafo?
– Com o maior prazer. E meus parabéns.
– Obrigado. Indo a Paris ou Londres?
– Desembarco no Orly mas pego uma conexão para a Grécia.
– Lindo lugar.
– Vou cantar num festival, vai ter artista do mundo inteiro.
– Minha esposa adora suas músicas. Aliás, o autógrafo é para ela, aquela ali com o rapaz.
– Uma simpatia. Qual o nome dela?
– Consuelo.
– Dona Consuelo… aqui está. O rapaz é filho de vocês?
– O Pedro? Meu neto caçula. Fique com o meu cartão. Se um dia precisar de alguma coisa em Brasília, será um prazer ajudá-lo. Muito obrigado pela gentileza.
– Eu que agradeço, senador…
– Filinto Müller à sua disposição.
– O senado não funciona esses dias, né?
– É um pequeno recesso de meio de ano. Se bem que aquilo às vezes funciona melhor fechado do que aberto.
Riram e desejaram uma boa viagem um ao outro. O portão de embarque finalmente abriu.
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Além da alta temperatura do caldo político da época, a deportação de Olga continha um ingrediente particularmente sórdido. Anos antes, o agora temido chefe da polícia política de Getúlio Vargas, que se dedicou obstinadamente a prender Olga, era um dos militares participantes da mítica Coluna Prestes, levante que tentou pôr fim ao domínio das oligarquias na política nacional. Em 1925, Filinto Müller foi acusado de deserção e expulso do movimento por sua principal liderança, o também militar Luís Carlos Prestes. Ao ser deportada para a Alemanha nazista, Olga Benário carregava em seu ventre a filha de Prestes.
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“Avião, solidão, companheiro do tempo e do vento, fugitivos do ar…”.
Desde que havia gravado essa música, não tinha uma vez sequer em que Agostinho dos Santos entrasse numa aeronave sem cantarolar baixinho esses versos. Era automático. “A música que não decolou”, ele pensou e se divertiu sozinho, enquanto se acomodava em seu assento e distribuía mais alguns sorrisos à sua volta. Inclusive para o rapaz alto e magro que ele tinha visto no saguão (e quem não viu?) e que, percebeu logo, ia passar a viagem toda pressionando o encosto de sua poltrona com os joelhos.
“Continuo seguindo sozinho o meu rumo. Vou voando, vivendo, sonhando, sabendo que vou voltar…”.
OUÇA
A música “Avião”, de Durval Ferreira, Maurício Einhorn e Hélio Matheus, lançada em 1971, é uma das menos conhecidas do repertório de Agostinho dos Santos. Nas poucas vezes em que a mencionam, invariavelmente é num contexto de triste ironia, já que foi uma das últimas músicas gravadas pelo artista antes do acidente fatal.
Agostinho dos Santos canta “Manhã de Carnaval”, de Luiz Bonfá e Antônio Maria, ao vivo no Bossa Nova Concert, show histórico que aconteceu no dia 21 de novembro de 1962 no Carnegie Hall, NY, e que lançou a bossa nova para o mundo.
NOTAS ADICIONAIS
O relato dos momentos que antecederam a deportação de Olga Benário foram baseados no livro “Olga”, de Fernando Morais, 10a edição, publicada pela Editora Alfa-Omega, São Paulo, 1986.
A causa do acidente do voo 820 da Varig, ocorrido em 11 de julho de 1973, foi uma bituca acesa de cigarro jogada na lixeira do banheiro dos fundos. Naquela época, era permitido fumar a bordo. Mas o que levou à morte 116 passageiros e quase todos os 10 tripulantes não foi o incêndio nem a queda do avião, mas sim a asfixia produzida pelo ar envenenado. Os materiais que revestiam as antigas aeronaves eram altamente tóxicos, por isso não houve pânico ou gritaria, todos os passageiros permaneceram sentados e de cintos afivelados. As máscaras de oxigênio não foram acionadas (naquela época elas tinham que ser acionadas) porque o sistema era de tubulação única que logo foi toda tomada pela fumaça. Este acidente foi responsável por diversas melhorias na segurança dos voos, desde o uso de materiais atóxicos para o revestimento das cabines até a presença obrigatória de detectores de fumaça e a criação de um sistema individual de fornecimento de oxigênio para as máscaras.
Ricardo Trajano, que hoje tem 68 anos, é pai de duas filhas e vive de palestras em que ajuda pessoas com traumas, conta que percebeu que pessoas que faziam parte da tripulação estavam morrendo porque iam parando de falar. Além de estar no compartimento da frente da aeronave, o que ajudou muito, ele teve tontura e foi ao chão, o que o fez aspirar menos veneno, já que a fumaça se concentrava mais acima.
Trajano também conta que uma das primeiras coisas que fez quando saiu do coma foi perguntar se Agostinho dos Santos estava bem.
“Manhã de Carnaval” fez parte da trilha do filme ítalo-franco-brasileiro de 1959, dirigido por Marcel Camus, Orfeu Negro, baseado na peça Orfeu da Conceição, escrita por Vinicius de Moraes e com trilha composta por Vinicius e Tom Jobim. Para o filme foram compostas músicas diferentes, também por Tom e Vinicius, com exceção de duas compostas por Luiz Bonfá como “Manhã de Carnaval”, em parceria com o letrista Antônio Maria. Até hoje, ela é uma das músicas brasileiras mais tocadas e gravadas por músicos e cantores do mundo todo. No filme, Orfeu Negro, Agostinho dos Santos dubla o ator Breno Mello, que interpreta Orfeu. Em princípio, a voz seria de João Gilberto, cantor que começava a fazer enorme sucesso no país, mas o diretor do filme achou o timbre de João “excessivamente branco”, por isso Tom e Vinicius chamaram Agostinho dos Santos, que foi prontamente aprovado pelo diretor. O filme levou a Palma de Ouro de Cannes de 1959 e o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1960. Mesmo assim, Vinicius de Moraes nunca perdoou o que Marcel Camus fez com seu roteiro.
Agostinho dos Santos era paulistano do bairro Bela Vista e foi um dos cantores e compositores mais populares do Brasil nos anos 1950 e 60. Seu estilo é até hoje considerado único na história da música brasileira. Quando morreu tinha apenas 41 anos e estava no auge da carreira. Deixou uma filha, Nancy Palleta dos Santos. Nancy teve um bar chamado Ferradura, em São Bernardo do Campo, São Paulo, onde preservava a memória do pai. Por causa da pandemia, o bar estava fechado desde março. Nancy morreu em julho deste ano, de causa não divulgada.
Quando embarcou no voo 820, na noite de 11 de julho de 1973, Filinto Müller estava completando exatos 73 anos de idade. Naquele momento ele era presidente do Senado Federal.
Entre as vítimas fatais estavam também a atriz Regina Lecléry, o iatista Jõtg Bruder e os jornalistas Júlio Delamare e Antônio Carlos Scavone.
FOTOS
Avião Boeing 707 PP-VJZ, do voo 820 da Varig, em foto de Vito Cedrini.
Agostinho dos Santos, divulgação.
Olga Benário quando interrogada no Brasil em março de 1936, acervo da Galerie Olga Benário, Berlim.
Voo 820 após o acidente, foto de reprodução.
Ricardo Trajano na época do acidente, foto de arquivo pessoal.
Ricardo Trajano mais recentemente, foto de Bruno Figueiredo, Folhapress.