Para Chico, com afeto


E para Dayse Stoklos Malucelli, pelos empurrõezinhos na direção dos meus desejos

 

Comecei a questionar as letras de Chico Buarque em análise, tempos antes de começar a ler as feministas. Algum incômodo me levou a dizer: não quero mais a estética de Chico Buarque nas minhas relações amorosas, quero algo mais contemporâneo. Metá Metá, Criolo, Anelis Assumpção, Chico César, entre outros, embalaram e ainda embalam minha vida, os encontros e desencontros, as amizades, as escritas, as danças. Enfim, meus amores.

Mas Chico é Chico. De tempos em tempos suas músicas retornam, outras.

Na última semana, me deparei com inúmeras manifestações de indignação nas redes diante da decisão de Chico. Ele diz que não cantará mais Com açúcar, com afeto em seus shows.

Não por acaso, a declaração deriva do documentário recém lançado O canto livre de Nara Leão. Além de me encantar com Nara, com seu estilo singular, com seu desejo decidido e com a importância dessa mulher para a cultura brasileira, me chamou atenção a construção narrativa, absolutamente contrastante com o filme Elis, lançado em 2016, que, na época, me incomodou pelo enredo excessivamente ancorado em seus dramas pessoais. Pretendo falar disso em outro momento.

Hoje escolhi falar de Chico. O encantamento e o brilho no olhar que vi em Chico, no documentário, ao contar de seu encontro e criações com Nara – e para Nara, me levaram a pensar: “esse homem gosta mesmo das mulheres”. Com alegria aprendi sobre a história da composição da música e com admiração e tranquilidade li a notícia de que não seria mais cantada.

Daí minha surpresa quando vi homens e mulheres indignados com sua declaração, falando em cancelamento, sobre “a esquerda se perdendo em pautas identitárias” e todo esse discurso conservador que desfaz a possibilidade de pensar na singularidade dos gestos.

Chico Buarque não cancelou nada. Se a proposta fosse banimento ou censura da música, retirada das redes e o apagamento da história, a conversa seria outra. Mas não é disso que se trata. Chico escolheu não seguir tocando uma música de mulher sofredora porque ouviu o que mulheres feministas lhe disseram.

Quem são essas mulheres? Talvez um documentário futuro nos conte. O que posso dizer é que, para mim, soa sexy, inteligente e contemporânea a escolha de Chico.

A arte de Chico de saber ouvir as mulheres.

Ou quem sabe, penso agora, o brilho no olhar que vejo nos olhos dele seja o meu.

Chico Buarque, amante das mulheres, sendo Chico Buarque.

 

** A foto é a imagem do álbum de Nara Leão, 10 anos depois, em seu reencontro com a Bossa Nova, em 1971.