Projeto em tramitação no Senado pode obrigar meninas e mulheres vítimas de estupro a manter gestações forçadas, apontam especialistas
O Projeto de Lei nº 2.524/2024, que “dispõe sobre os direitos do nascituro na ordem civil, estabelecendo a presunção absoluta de viabilidade fetal a partir da vigésima segunda semana de gravidez”, acendeu um alerta entre entidades de direitos humanos e movimentos pela justiça reprodutiva. Incluído de forma repentina na pauta da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, o texto é visto como um grave retrocesso nos direitos das mulheres e meninas no país.
Se aprovado, o PL alterará a legislação em vigor há mais de 80 anos e restringirá o acesso ao aborto legal — mesmo em casos já previstos pela lei brasileira desde 1940: risco de vida da gestante e gravidez resultante de estupro. O texto também ignora a decisão do Supremo Tribunal Federal (ADPF 54/2012), que reconheceu o direito à interrupção da gestação em casos de anencefalia.
Risco de gestações forçadas e tortura psicológica
Segundo especialistas, ao estabelecer a “presunção absoluta de viabilidade fetal” a partir da 22ª semana, o projeto impediria a interrupção da gravidez mesmo em casos de estupro, obrigando mulheres e meninas — inclusive crianças — a manter gestações forçadas. Na prática, isso configuraria uma forma de tortura física e psicológica.
O Brasil registrou, em 2024, o maior número de casos de estupro e estupro de vulnerável da história: 87.545 vítimas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025. Destas, 76,8% eram menores de 14 anos, e mais da metade eram meninas negras. Cerca de 65% das violências ocorreram dentro de casa, praticadas por familiares ou pessoas próximas.
Gravidez infantil: uma violação de direitos
Entre 2014 e 2023, nasceram em média 57 bebês por dia de meninas entre 10 e 14 anos — mais de 200 mil nascimentos no total. No mesmo período, apenas 828 meninas conseguiram acessar o aborto legal, segundo dados da plataforma AzMina.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a gravidez na adolescência como uma grave questão de saúde pública. Entre 15 e 19 anos, as complicações na gestação e no parto são a segunda principal causa de morte entre meninas no mundo. No Brasil, uma adolescente entre 10 e 19 anos morre a cada semana por complicações da gravidez, de acordo com levantamento do Intercept Brasil.
Negar o aborto nesses casos, afirmam especialistas, é negar proteção e impor a maternidade forçada a meninas em situação de extrema vulnerabilidade — muitas vezes vítimas de violência sexual dentro do próprio lar.
Violação de direitos constitucionais e tratados internacionais
O PL 2.524/2024 é considerado inconstitucional por violar princípios fundamentais da Constituição Federal, como:
- A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III);
- A igualdade e a não discriminação (arts. 3º, IV e 5º);
- O direito à saúde (art. 196).
Além disso, contraria compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em casos como Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012) e Beatriz vs. El Salvador (2023), já reconheceu que a criminalização absoluta do aborto viola direitos à vida, à integridade pessoal e à liberdade.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos também define o nascimento como o marco legal que confere o estatuto de pessoa humana, e não a concepção.
Retrocesso em direitos humanos e justiça reprodutiva
Para organizações da sociedade civil, o PL 2.524/2024 representa um grave retrocesso nas políticas de justiça reprodutiva e nos direitos das mulheres e meninas no Brasil. Caso seja aprovado, o projeto aprofundará desigualdades e perpetuará o ciclo de violência sexual e institucional — especialmente entre meninas negras e pobres das regiões Norte e Nordeste.
Em nota, as entidades afirmam que “o Estado não pode ser agente reprodutor da violência sexual”. E concluem:
“O PL 2.524/2024 ameaça a vida, a saúde e a dignidade de mulheres e meninas sobreviventes de estupro. Sua aprovação violaria a Constituição Federal e tratados internacionais de direitos humanos, impondo sofrimento e perpetuando injustiças que já assolam o país.”