O Poeta da Vila


Noel Rosa pertenceu à geração que definiu os matizes da música brasileira

O ocorrido se deu em um chalé na rua Teodoro da Silva, número 130, Vila Isabel, Rio de Janeiro, no ano da graça de 1910. Era um parto difícil. A jovem professora primária Marta Medeiros Rosa, assistida pelo marido, o comerciante Manuel Medeiros Rosa, necessitou de fórceps para dar à luz seu primeiro rebento. O doutor José Rodrigues de Graça Mello — médico-assistente que atendia emergências — foi obrigado a puxar o bebê de forma urgente, sob pena de perdê-lo. Acabou que foi inevitável o afundamento do maxilar do pequeno. Assim veio ao mundo Noel Medeiros Rosa.

Noel cresceu marcado pelo queixo amassado, que parecia inexistir. O incidente provocou também uma paralisia no lado direito da face. Com o advento da Primeira Guerra Mundial, o comércio de roupas de seu pai abriu falência, e seu Manuel partiu para o interior de São Paulo trabalhar nas fazendas de café.

Marta abriu uma pequena escola, o Externato Santa Rita de Cássia. O defeito no queixo de Noel lhe provocava dores e muito incômodo. Aos seis anos, foi tentada uma intervenção cirúrgica, mas a precária medicina ortopédica da época não favoreceu o garoto, e não foi encontrada solução para o caso. Aos 12, outra tentativa, pouco melhor, mas a marca do maxilar afundado seria para sempre.

Ingressou no Colégio São Bento, muito tradicional do Rio. Nessa altura, já ganhara o apelido de “Queixinho”. Era um garoto muito triste. Aprendeu o bandolim ainda pequeno, e nos intervalos das aulas tocava para os colegas. Causava, pois acabava que muitos se reuniam ao seu redor. Noel começou a sacar sua importância no mundo.

Foi ao violão, que emprestava de seu pai quando este aparecia, vindo de Araçatuba no Noroeste paulista passar férias e festejos de fim de ano com a família. Com 15 anos já dominava o instrumento. Seu irmão (nascido em 1914) também tocava, e a dupla ganhou certa fama na Vila Isabel.

Aos 18 anos ele e os amigos Henrique Domingos, Almirante, Alvinho, Braguinha e Henrique Brito formaram o Bando de Tangarás. Era 1929 e iniciava a era do rádio no país. Gravaram um primeiro disco, inicialmente influenciado pela música sertaneja. O grupo fez bastante sucesso apresentando-se nos auditórios das emissoras, cinemas e teatros.

Em 1930, Noel ingressou na Faculdade Nacional de Medicina. Já era um caso perdido para a música e a boemia, entretanto. Acontece que o garoto introvertido, que andava sempre atrás e arredio nos grupos da noite, de pouca conversa e muito ouvido, era um compositor sem igual. Quando gravou Com que Roupa?, Noel já iniciara uma carreira sem os Tangarás. A canção foi um sucesso. Estourou no carnaval de 1931. Abandonou a medicina após dois anos.

Ironia, rimas espetaculares, muito humor e crônica social marcavam as composições do poeta. Já em 1932, era contrarregra no programa de Ademar Casé, na Rádio Philips. Corria o tempo dos vozeirões de dó-de-peito, no qual reinavam Francisco Alves e Vicente Celestino, mas Noel arriscava-se a cantar, apesar da voz tímida e pouco potente.

Incrivelmente popular, Noel passou a ser requisitado para parcerias e convidado a participar dos mais diversos conjuntos. O samba O Orvalho Vem Caindo feito em parceria com Kid Pepe — um parceiro inusitado, pois reza a lenda que não compunha, mas exigia parceria de Noel a troco de protegê-lo das rudezas da noite boêmia, dado que era boxeador —, foi gravado por Almirante em 1933 e acabou se tornando o grande sucesso no carnaval do ano seguinte. Almirante cantou a música com os Diabos do Céu, um regional comandado por Pixinguinha.

Foi trabalhar na Rádio Clube do Brasil em 1935, onde capitaneava um humorístico chamado Conversa de Esquina. Criou algumas revistas radiofônicas, nas quais parodiava composições conhecidas. Criava em tempo integral.

Encantador apesar do defeito no queixo, Noel arruma casamento com Lindaura, uma moça que veio de Sergipe. Boêmio, mantinha várias amantes, para algumas das quais fez belas e numerosas canções, e não deixou de frequentar os cabarés da Lapa, onde rolava a atmosfera mágica do período mais fértil do samba carioca. Obviamente fumando e bebendo. Sem trégua.

Lindaura resolveu trabalhar fora pra compensar a solidão. Noel não gostou nada da ideia, e compôs um samba de ocasião, Você Vai se Quiser. Era um mestre em tirar poesia e música de tudo que ocorria a seu redor, no formato canção popular. A música dizia “não vá dizer depois / que você não tem vestido / e o jantar não dá para dois…”. Compunha em ritmo industrial e suas canções foram gravadas por meio mundo, com destaque para Aracy de Almeida.

A tuberculose dos poetas não tardou a deitar seus tentáculos sobre os pulmões do Poeta da Vila. Ainda em 1935, foi se tratar em uma casa de saúde em Belo Horizonte. Na volta, deitou a compor e trabalhar. Pensando estar curado, e boêmio incurável, retomou a mesma rotina farrista de antes.

Menina que namora
Na esquina e no portão
Rapaz casado com dez filhos, sem tostão,
Se o pai descobre o truque dá uma coça
Coisa nossa, muito nossa

 

O samba, a prontidão e outras bossas,
São nossas coisas, são coisas nossas…

(São Coisas Nossas, 1932)

Mas havia de fato muito trabalho. Era o tempo dos musicais e do Cassino da Lapa. E o Brasil já produzia cinema em profusão. Em Alô, Alô, Carnaval (Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, 1936) duas composições de Noel, Palpite Infeliz e Não Resta a Menor Dúvida faziam parte do filme.

Noel piorou de saúde. Não houve jeito. Faleceu no Rio de Janeiro, no dia 4 de maio de 1937. Tinha 26 anos de idade e 228 composições, segundo dados oficiais, compostas durante o intervalo de apenas sete anos incompletos. Há quem diga mais de trezentas.

Não cabe enumerar a quantidade avassaladora de sambas e sucessos que Noel Rosa compôs, mas a dimensão de sua obra. Alguns dos maiores pesquisadores do samba destacam que o principal em sua produção — destacada em um universo onde se consolidaram o samba e boa parte do cancioneiro brasileiro do século 20 — foi a união de classes sociais. Noel era um jovem branco de classe média, de família tradicional, que optou por subir o morro.

Seus amigos foram ninguém menos que Cartola, Orestes Barbosa, Aracy de Almeida, Lamartine Babo, Ismael Silva, Vadico, Nássara, Carmen Miranda, Geraldo Pereira, Wilson Batista — com quem empreendeu polêmica criativa em duelos intermináveis nos quais as bases da discussão eram músicas que um escrevia ao outro, em tom de provocação, gerando uma série de canções geniais — e muitos outros. Personagens, gênios da raça que ajudaram a transformar o samba na maior expressão da humanidade. De forma absolutamente genuína.

É o maior poeta popular do Brasil. Sem discussão, ou É Preciso Discutir (1932): “é preciso discutir / mas não quero discussão / da discussão sai a razão / mas às vezes sai pancada / a questão é complicada / quero ver a decisão”.

Como escreveu João Antônio, “o nome dele era Noel Rosa. Com todas as letras e conforme a certidão de nascimento: Noel Medeiros Rosa”.

Ouça. Leia. Assista:

Noel Rosa – Uma Biografia, livro por João Máximo e Carlos Didier

Noel Rosa – Trocou a Medicina Pela Boemia – álbum completo

Noel Rosa – Poeta da Vila – filme completo

Imagens: reprodução