O Playboysismo Estético e outras coisas contra a música


 

“O crítico cultural brasileiro é como cartório: carimba, autentica, cobra caro e nunca entrega nada no prazo.”

A crítica musical brasileira é um cartório de gosto. Funciona em horário comercial, tem fila, burocracia e carimbo — e, claro, o famoso selo de autenticidade que só vale dentro do próprio balcão. Eles não escrevem sobre música; lavram escritura. Querem definir não apenas o que é bom ou ruim, mas principalmente quem pode ou não pode fazer determinada música. São, enfim, os síndicos de prédio da estética nacional.

Eu, que cresci nos bairros baixos de Curitiba, com ônibus lotado, barro na rua e vizinho gritando jogo pela janela, sempre fiz música sofisticada. Violões em camadas, contrapontos, texturas eletroacústicas. E isso foi um escândalo para os fiscais do gosto: como assim um sujeito da periferia ousa soar erudito? A função social da periferia, segundo eles, é produzir “música periférica”: funk, rap, batidão cru, tudo devidamente enquadrado no formulário da antropologia de boteco. Eu decidi tocar fora da pasta azul — e imediatamente virei ameaça estética.

Enquanto isso, nos bairros ricos, Batel e Leblon, floresce a fauna dos artistas de fachada: os fãs de Los Hermanos, os eternos loseer manos. Rapazes de classe média alta que trocam a herança por um violão desafinado e três acordes de melancolia. Esteticamente, empobrecem-se de propósito, como se pobreza fosse traje artístico. É uma caricatura: a elite fingindo fome estética para ganhar um prato feito da crítica.

Mas a verdade é mais cruel: a cultura brasileira nunca saiu do cartório de 1922. A Semana de Arte Moderna virou certidão de nascimento, casamento e óbito da “vanguarda” nacional. Passaram-se cem anos, e ainda estamos ouvindo os ecos de um grito que, à época, foi até corajoso — mas que hoje funciona como música de espera de repartição pública. Quando se tentou mastigar o novo, veio o tropicalismo, com sua antropofagia de conveniência: Beatles com dendê, guitarra elétrica com berimbau. A crítica, como sempre, carimbou “inovador” e voltou para o cafezinho.

Enquanto isso, a periferia continua sendo tratada como suspeita quando não cumpre seu papel de zoológico sonoro. Samba, jazz, blues e tango nasceram exatamente onde a crítica nunca olha: nos guetos, nos prostíbulos, nos becos. Mas por aqui, se alguém dos bairros baixos ousa repetir a história, é barrado na recepção, sem reconhecimento de firma.

A vida é crônica: no Brasil, a arte não progride — ela espera senha no cartório cultural, enquanto o síndico da estética decide se você pode ou não usar a piscina.