Série documental exibida nos anos 1970 foi baseada em similar britânico, mas teve de ser adaptada ao público brasileiro. Dissecou as entranhas da Segunda Guerra Mundial pela primeira vez na televisão nacional
Entre 1969 e 1973 a Thames Television, extinta rede de tevê, aventurou-se em uma produção inédita até então. Levar aos telespectadores as entranhas da Segunda Guerra Mundial, em formato documentário. A produção ficou a cargo de Jeremy Isaacs.
Isaacs teve que fazer um grande trabalho de persuasão na Thames para realizar o trabalho. O projeto envolvia difíceis levantamentos históricos de grande escala, que resultariam em 26 episódios de 50 minutos a serem exibidos uma vez por semana durante seis meses. Não foi uma escolha natural de programação para uma emissora comercial no início dos anos 1970.
Foi nomeada The World at War, e teve apresentação de ninguém menos que sir Laurence Olivier, o mais renomado ator britânico de todos os tempos. Shakespeareano de formação e temperamento. A série tinha muitos pontos fortes, mas a chave para o seu sucesso como televisão histórica foi a notável variedade de entrevistados.
Os principais líderes militares do confronto, incluindo o comandante naval alemão Karl Doenitz e o chefe do Comando de Bombardeiros da RAF, Arthur Harris, deram sua contribuição, além de soldados comuns, marinheiros e aviadores que estiveram nos mais variados teatros de guerra entre 1939 e 1945.
Políticos importantes como o secretário de relações exteriores da guerra Anthony Eden lançaram luz sobre o arco mais amplo da guerra, enquanto cidadãos comuns contavam os eventos de sua própria ótica. Vários membros do círculo íntimo de Hitler também foram rastreados e entrevistados, incluindo seu criado, secretário e ajudante.
Sobreviventes de campos de extermínio contaram suas terríveis e impressionantes histórias, assim como alguns de seus algozes, já à época envergonhados.
No Brasil, a série foi adquirida e produzida em versão brasileira pela Divisão de Reportagens Especiais da Rede Globo. O Mundo em Guerra foi dirigido pelo cineasta Paulo Gil Soares, apresentado pelo ator Walmor Chagas e teve uma trilha sonora composta pelo músico argentino Lalo Schiffrin. Mas não houve como aproveitar todo material da série original inglesa.
Apenas 20% do material utilizado na versão brasileira foi retirado de World at War, Apesar da qualidade, os filmes ingleses foram considerados monótonos para os padrões de montagem e edição da Rede Globo, que em 1975 já era altíssimo e viria a ser referência mundial. É que World at War foi produzida para o público europeu, o que acabou por omitir fatos e informações que seriam essenciais para a maior compreensão do público brasileiro.
O jornalista Luiz Lobo, diretor de criação responsável pela pesquisa e redação, afirmou que o material original sequer citava os russos na guerra, por exemplo. “Tivemos que refazer tudo. Contar a parte dos russos, contar a parte dos americanos, contar a participação dos brasileiros. Tivemos que fazer uma nova série. Tivemos que investigar, comprar material. O material russo nós pedimos na Embaixada e eles foram muito generosos conosco. Nos deram muito material e ainda tiveram a delicadeza de perguntar se nós não queríamos os serviços de um historiador que veio da Rússia para nos dar cobertura”, declarou Lobo ao portal Memória Globo em 2001.
O trabalho teve orientação do professor Marcos Margulies, que tinha em seu currículo também o fato de ser um sobrevivente do Gueto de Varsóvia. Ele e Luis Lobo dividiram os créditos pelo texto e edição da série.
Além de documentos e filmes, o novo material incluía depoimentos de brasileiros e alemães radicados no Rio que participaram do conflito. Um dos segmentos foi todo dedicado à atuação da Força Expedicionária Brasileira durante a Guerra. Pesquisas bastante rigorosas foram realizadas também em arquivos cinematográficos, museus e bibliotecas de diversas partes do mundo, na Alemanha, Inglaterra, Itália e EUA.
Funcionou. O Mundo em Guerra marcou época na tevê brasileira. Com Walmor Chagas à frente. Audiências espetaculares, dignas de campeonatos de futebol. A adaptação foi de fato uma vitória da equipe responsável pela versão brasileira. É memorável o capítulo que trata da participação brasileira, algo de grande ineditismo em formato documentário na época. Todos queriam saber como fora o Brasil e seus pracinhas da FEB no maior confronto armado da História.
O formato em relação à versão britânica também mudou. No original, sir Laurence Olivier narrava predominantemente com locução em off sobre as imagens. Para a versão da Globo, Walmor Chagas aparecia em primeiro plano e fotografias dos locais visitados eram projetadas ao fundo.
Walmor Chagas — ator que até então tinha apenas uma experiência pequena como apresentador de telejornais em Porto Alegre — percorreu vários pontos da Europa junto ao cinegrafista Ricardo Stein, filmando os locais enquanto narrava diretamente dos cenários onde haviam acontecido os fatos. Mas o material acabou não sendo aproveitado.
Uma das curiosidades e importância de documentários como as versões britânica e brasileira de World at War ou O Mundo em Guerra, tanto faz, é que se quiséssemos realizá-los hoje, seria impossível. Não há praticamente nenhuma testemunha real dos conflitos — viva — para contar a história, da ótica de quem os vivenciou de fato.
O Mundo em Guerra é uma preciosidade. Não há planos, aparentemente, de exibi-lo novamente. Pouca coisa se encontra no YouTube ou nas plataformas de streaming da Rede Globo. O material britânico, entretanto, teve edição em DVD e é muito fácil encontrar pelas redes diversas. Todos os capítulos, alguns com legendas.
Walmor Chagas, que fez história no teatro, cinema e televisão, com interpretações memoráveis, tirou sua própria vida em 2013, aos 82 anos de idade.
Não viveu para ver o retorno do fascismo e o mundo estar à beira de ingressar em mais um conflito insano que custará incontáveis vidas inocentes.
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Ouça. Leia. Assista:
O Mundo em Guerra – trecho 1975
World at War – 1974 – cap. 01
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Imagens: reprodução