O melhor roteiro é sempre o melhor filme – Parte 2


Noivo Neurótico Noiva Nervosa (1977). Oscar de melhor roteiro original, filme, diretor, ator e atriz em 1978

A força de um filme está no texto

Impossível hoje considerar o sucesso do cinema de entretenimento como indústria que movimenta bilhões de dólares em torno do globo sem imaginar uma lista cintilante de estrelas, um diretor badalado ou de currículo consagrado, os melhores técnicos em efeitos sonoros, de imagens e de produção de cena, os maiores talentos da arte digital criando a ilusão tecnológica necessária para manter a sétima arte no topo dos desejos de uma imensa parcela da humanidade.

É com todo esse aparato e poder de fogo que o cinema de Hollywood dita as regras há algum tempo, tendo o Oscar como o emblema maior da sua supremacia comercial. Mas nada disso teria início ou seria possível sem um texto, sem um argumento, sem um roteiro. Aliás, sem uma ideia na cabeça. E, como os magnatas de Hollywood não nasceram bobos, eles costumam trilhar o caminho mais fácil: roteirizar um texto já consagrado, uma ideia que as pessoas já carregam em seu imaginário, uma história já contada e testada. Exatamente por isso uma boa parcela dos filmes que ganha a estatueta de Melhor Roteiro Adaptado leva também o Oscar de Melhor Filme.

Essa constatação é verdadeira pelo menos nas últimas cinco décadas, desde o ano de 1970. Ao colocar lado a lado as listas dos vencedores nas duas categorias nessas últimas 48 edições, contabilizamos que 22 filmes originados em um livro, conto ou texto literário levaram a estatueta de Melhor Filme do ano. Os demais 26 prêmios foram distribuídos meio a meio entre vencedores de Melhor Roteiro Original e os que não receberam nenhum prêmio de roteiro – 13 a 13. Ou seja, 35 de 48 (ou 84%) dos melhores filmes também tiveram os roteiros reconhecidos pela Academia de Cinema de Hollywood. Eis a comprovação matemática e empírica da tese de que o melhor roteiro sempre é o melhor filme – o que nos leva à conclusão também de que o universo hollywoodiano não passa de uma produção industrial em série de filmes que segue uma fórmula infalível e certeira para entupir de dólares os cofres da meia dúzia de donos da bagaça toda. Nesse contexto, nós, pobres mortais, apenas entramos com o dinheiro do ingresso, corações e mentes, sustentando toda essa gigantesca estrutura. Mas, mesmo assim, como não amar tudo isso?

A explicação para que os vencedores nas categorias de roteiros sejam quase sempre os vencedores do prêmio de Melhor Filme é simples e está na própria lógica da forma como os prêmios do Oscar são distribuídos. Afora os prêmios de Melhor Filme e Melhor Filme Estrangeiro em que todos os associados da Academia de Cinema de Hollywood votam, a escolha dos melhores em todas as demais categorias é realizada apenas entre os profissionais da área em questão. Funciona assim: atores e atrizes votam em atores e atrizes; diretores votam em diretores; figurinistas votam em figurinistas; diretores de arte votam em diretores de arte; editores de som votam em editores de som; e, portanto, roteiristas votam em roteiristas. Bom lembrar que muitos roteiristas também são atores, diretores ou produtores, englobando assim um universo bastante significativo da comunidade cinematográfica de Los Angeles. As indicações e premiações de Melhores Roteiros, portanto, surgem desse seleto grupo de pessoas que pensam e são as responsáveis por dar o start para toda e qualquer produção de sucesso (ou não) das telas do mundo inteiro. Como dito, via de regra, tomam um texto consagrado e o transportam para a linguagem cinematográfica. E, daí, surgem os melhores roteiros adaptados e, por consequência, os melhores filmes de Hollywood.

Sob essa lógica, além de votarem nessa fórmula certeira que aumenta as chances de um filme levar o prêmio máximo do Oscar, essas cabeças têm a oportunidade também de premiar aquele roteiro, digamos, outsider, aquele texto que chamou a atenção durante o ano, tendo algum ou muito sucesso de bilheteria, pela sua originalidade e inventividade. São os textos especialmente escritos para o cinema, sob um argumento diferente e ótica inovadora para os padrões hollywoodianos. É desse microuniverso, fora do esquemão industrial – opinião pessoal –, que sempre surgem os filmes mais interessantes, desbravadores de linguagens e criativos. Foi o caso neste ano, por exemplo, de “Manchester à Beira Mar”. O filme causou um refrescante impacto do mesmo modo que aconteceu em 2007 com “Pequena Miss Shunshine” ou, no ano seguinte, com “Juno”. São filmes-pérola que ganham crítica e público pela força do roteiro, em que pequenos dramas são tratados sem maiores estripulias cinematográficas. Apenas com personagens inesquecíveis, diálogos contundentes e uma história bem contada.

Um bom roteiro original também pode consagrar diretores criativos, como Tarantino (“Pulp Fiction”, 1995, e “Django”, 2013); os irmãos Coen (“Fargo”, 1997); Almodóvar (“Fale com ela”, 2003), Sofia Coppola (“Encontros e Desencontros”, 2004). O prêmio de roteiro original também pode ser entregue várias vezes ao mesmo diretor sem que esse tenha comparecido para recebê-los – Woody Allen (“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, 1978; “Hannah e Suas Irmãs”, 1987; e “Meia-noite em Paris”, 2012). O roteiro original também pode estar a serviço da indústria cultural ditada por Hollywood, levando também o prêmio de Melhor Filme do ano – “Carruagens de Fogo”, 1982; “Gandhi”, 1983; “Rain Man”, 1989; “Beleza Americana”, 2000. Ou, ao contrário, pode resultar em uma grande e inesquecível produção, sem que tenha levado o prêmio máximo da Academia – “Chinatown”, 1975; “Um Dia de Cão”, 1976; “Rede de Intrigas”, 1977; “Sociedade dos Poetas Mortos”, 1990; “Thelma e Louise”, 1992. Um roteiro original também pode chocar e impactar a plateia pelo conteúdo político (“O Candidato”, 1973, e “Milk”, 2009), por um tema polêmico (“Traídos pelo Desejo”, 1993, e “Amargo Regresso”, 1979) ou por uma inovadora proposta estética (“O Piano”, 1994, e “Ela”, 2014).

Como nem tudo é perfeito, obviamente que é possível detectar alguns premiados com o título oscariano de Melhor Roteiro Original sem qualquer qualificação para isso. São os casos de “Shakespeare Apaixonado”, de 1999, e “Crash”, de 2006, dois filmes medíocres que também levaram o prêmio de melhores do ano. Afora esses dois títulos, certamente toda a lista de vencedores de roteiro original tem méritos e é digna de respeito. Mas há casos controversos também. Por exemplo, em 1986, “A Testemunha” ganhou de quatro roteiros impecáveis e maravilhosos: “De Volta Para o Futuro”, “Brazil”, “A História Oficial” e “A Rosa Púrpura do Cairo”. Bom lembrar que esta análise foi feita apenas com as listas de premiados das últimas 48 edições do Oscar, do ano de 1970 ao de 2017. O prêmio existe desde 1929 e no ano que vem irá para a nonagésima edição. Este exercício analítico apenas se ateve a um período específico, em que a indústria cinematográfica ganhou os contornos atuais de mercado, de público, estéticos, tecnológicos, de produção e de distribuição. Também buscou mostrar o quanto é íntima, na indústria cultural, a relação entre um grande sucesso de bilheteria e a produção intelectual de um roteirista, comprovando que o cinema não é só ilusão. É também e necessariamente uma história bem contada.

 

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