Autor chega a seu segundo romance com fôlego raro. Uma aula sobre a Curitiba da contracultura e dos anos de chumbo. Lançamento é neste sábado no Gilda Bar
Quando Bob Dylan ganhou o Nobel de Literatura, há coisa de dois anos passados, eu me encontrava em casa. Minha mulher havia saído trabalhar cedo e eu realizava pequenos afazeres domésticos pela manhã, antes de tomar meu rumo à redação em que trabalhava, a partir da hora do almoço, mais ou menos.
Vi a notícia no programa da Fátima Bernardes, já perto das onze horas. Surpreso e feliz desliguei a tevê, coloquei pra tocar um pendrive com Blonde on Blonde (1966) do cantor e poeta folk, agora Nobel! Fui lavando a louça. No meio de Pledging my time, profundamente emocionado, caí em lágrimas. Talvez relembrando a geração de meus pais. A que “mudou o mundo” nos anos 1960’s. Este prêmio soou algo como uma consagração a todos eles, que contavam menos de 20 anos à época. O Nobel de Bob Dylan foi a redenção da juventude que viveu tudo aquilo. A certeza de que foi muito mais que um “lindo sonho delirante”. Pode ser. Enxuguei a louça e as lágrimas, tomei um banho, providenciei minha indumentária e fui trabalhar.
Um velho jornalista à beira de seus 70 anos está entediado, no mezanino de um café, em tarde chuvosa. Ele integra uma oficina de escrita literária da qual resolveu participar. O objetivo é aliviar o marasmo de sua vida, ano 2017. Resolve apresentar como trabalho de conclusão da oficina a sua própria história. O resultado é Que fim levaram todas as flores (Kotter, 2019), segundo romance do escritor e professor Otto Leopoldo Winck.

O enredo gira em torno da vida de Elisa, Adrian e Ruy (este, o autor entediado, também o narrador nas duas primeiras partes do livro). Os três se conhecem na mesma cidade no interior do Paraná, onde vivem a adolescência. A vida inocente de seus primeiros anos acaba por conduzi-los a Curitiba no mitológico e icônico ano de 1968, para prestar seus vestibulares e enfrentar por conta própria (as contas pagas por seus pais, a princípio) o começo da vida adulta. Assim é desenrolada uma trama que inclui triângulo amoroso, descobertas e evolução intelectual, dúvidas juvenis, ação política, sexo, drogas e rock’n roll. Uma miríade de “ritos de passagem”, como não poderia deixar de ser em uma narrativa de tal natureza.
Os personagens vão tomando para si as características desenvolvidas desde a tenra idade no interior. O jovem tímido e cheio de dúvidas, a menina que se torna mulher, o destemido que lidera as passeatas, o escritor sem obra e em crise, as velhas pendengas entre a luta armada e a revolução pela paz, as noções de democracia, os vícios e idiossincrasias de todos. Sem quase alusão ao realismo fantástico latino-americano, há ainda um mendigo chamado Melquíades. Graciosa alegoria. O mundo em crise. Parece que já vimos esse filme. E vimos.
O que deve surpreender o leitor menos avisado é: aquilo que parece ser apenas reminiscência da juventude, reflexão acerca de atos e consequências, transforma-se aos poucos em uma avassaladora descrição da Curitiba 68. Winck quase não deixa escapar nada. Da geografia à arquitetura, da minienciclopédia Tesouros da Juventude aos festivais de música, dos rios e ruas que cortam a cidade àquelas suas personagens mais marcantes. O leitor encontra referências que vão de Emiliano Perneta (em estátua) a um jovem Paulo Leminski, ou Jamil Snege e Nelson Padrella (!!!). Passando pelas livrarias do Povo, Ghignone e do Chaim, Winck faz menção às galerias e cafés, restaurantes, pratos típicos, cinemas. Um raro e minucioso mapa do panorama histórico do período, sem igual ou paralelo jamais escrito em obra de ficção. Quase dá pra sentir o gosto da carne de onça e do chope escuro do Stuart.
Como descreve a escritora Marcia Denser na orelha do livro: “Se em seu primeiro romance Jaboc, o cenário é a Curitiba dos anos 2000, neste segundo o leque temporal se amplia (…), numa Curitiba totalmente transformada como o Brasil e o mundo se transformaram nesse período. Com efeito, Que fim levaram todas as flores tem dois eixos simultâneos: o grande painel da época (…) e a saga de três personagens que constituem seu núcleo duro: Ruy, Adrian e Elisa – os três jovens que iriam modificar o mundo”.
E modificar o mundo em Curitiba não é tarefa fácil, a qualquer que passe, em qualquer tempo. Otto Leopoldo Winck, a exemplo do citado Jaboc, empreende novamente uma espécie de “acerto de contas” com seu passado. Ligado à cultura pop e muito especialmente à música rock, a diferença em Que fim levaram todas as flores é que o autor acerta as contas com um passado que não viveu, mas do qual certamente todos de sua geração (Otto nasceu em 1967) são tributários. Somos. Por estética ou conteúdo que escolhemos para nossas próprias vidas. O existencialismo de Sartre e Camus é bússola intermitente durante toda história.
Sem o desagradável spoiller, como se diz em 2019, não é preciso informar que nada acaba lá muito bem, visto que as coisas também não acabaram bem para o Brasil de hoje. Mas o advento de um segundo romance de um autor que demonstra maturidade e fôlego, não deixa de ser um alento. Um livro que será referência a gerações futuras, sem dúvida.
Voltando ao primeiro parágrafo desta resenha, para que dúvidas não pairem sobre a importância dos anos referidos neste romance. Há pouco, em conversa recente com uma amiga sobre aquele Nobel do Dylan, refletíamos acerca de o quanto ele (homens e mulheres como ele) foi importante para a humanidade. As mudanças, a música, a forma de fazer arte, os costumes. Cheguei a argumentar: “sem Dylan talvez nós não estivéssemos aqui conversando agora, um homem de bermudas e uma mulher usando calças compridas, divorciada…”. Ela: “e um homem adulto jamais estaria confessando que estava chorando; muito menos lavando a louça”.
O autor
Otto Leopoldo Winck nasceu no Rio de Janeiro, em 1967. Após uma passagem por Porto Alegre, radicou-se em Curitiba, em 1982. Doutor e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, em 2006 foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2012 foi o vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia, e em 2017 lançou pela Editora Appris o ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza – resultado de sua pesquisa de doutorado. Em 2018 a Kotter Editorial publicou Cosmogonias, a sua produção poética dos últimos cinco anos. Atualmente, leciona na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e no programa de pós-graduação stricto sensu da Uniandrade, em Curitiba.
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Serviço:
Quem fim levaram todas as flores – romance de Otto Leopoldo Winck – Lançamento
9 de novembro – sábado – 16 horas
Gilda Bar e Restaurante
Cândido Lopes, 323
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Livro: R$49,90
Compre online: https://kotter.com.br/loja/que-fim-levaram-as-flores/