Partindo de cenários particulares do sul dos Estados Unidos, escritora tratou temas de envergadura universal. Seu legado é precioso e a coloca no rol dos maiores da literatura do século 20
A Balada do Café Triste é uma novela peculiar e incomum ambientada no sul dos EUA na década de 1930. Amelia Evans é uma senhorita que administra uma pequena loja em uma cidade em algum fim-do-mundo sulista, complementando sua renda com as vendas de uma destilaria de uísque. Um dia, um estranho chega à cidade, sendo catalisador de muitas histórias. O visitante é um anão corcunda que afirma ser o primo distante de Amelia, de nome Lymon. Amelia o leva para sua casa, e eles formam uma amizade e parceria um tanto quanto improváveis. Sob a influência do primo Lymon, a loja se transforma no café do título da história. The Sad Café.
Amelia teve um curto casamento com Marvin Macy, um sujeito brigão típico da localidade retratada. O casamento durou apenas dez dias, e isso deveu-se ao fato de Amelia claramente nunca ter pretendido tal matrimônio. Rejeitado, Macy começa a encher o saco, e acaba na cadeia pública estadual. Tudo isso aconteceu muito antes da chegada do primo Lymon, mas inevitavelmente Macy é enfim libertado e retorna para destruir o relacionamento pacífico entre Amelia e o primo Lymon. O que piora a situação é que Lymon transfere seu afeto para Macy, adorando-o como um herói. Macy é tudo o que ele não é, tanto física quanto mentalmente. Juntos, eles espancam Amelia e destroem sua casa e seus negócios. Ela é derrotada pela traição e fecha o café para sempre.
Trata-se de uma história trágica de amor infeliz e rejeição. Em muitos aspectos, é uma representação clássica do estilo de escrita que convencionou-se chamar “gótico do sul”, gênero do qual Carson McCullers, a autora da história, é tida como maior representante. Utilizando-se de eventos e personagens que podem ser considerados macabros para descrever o ambiente social do sul dos Estados Unidos, o Southern Gothic é invariavelmente baseado nas tradições europeias do gótico, mas é moldado a partir de especificidades americanas.
O conto constrói lentamente um ambiente de suspense, tão lento como é a vida naquela parte da América. Durante todo o tempo, ou na maior parte dele, Amelia e Macy estão à flor da pele para iniciar uma briga entre si, mas a luta é adiada até o clímax da história. Os personagens são grotescos — enquanto Lymon é um anão, Amelia é muito alta, masculinizada, mais forte que a maioria dos homens, e Macy é abusivo e malvado. Um trio e tanto para as confusões que se seguem.
Comunidades rurais decadentes são o cenário típico das histórias góticas do sul, e a Balada do Café Triste certamente atende a esse critério. Algumas das características mais tradicionais do gótico sulista, como as referências à escravidão e ao racismo, são apenas brevemente referenciadas, mas são indeléveis ao leitor. Como acontece na passagem em que Amelia corta as vestes da Ku Klux Klan de Macy.
No fim das contas, como em toda sociedade de mentalidade atrasada, é justamente a mentalidade o que mais demora a se transformar. Tanto o primo Lymon quanto o ex-marido Macy tentam mudar, e às vezes são gentis com Amelia, mas no final ambos se voltam contra ela.
A narrativa pessoal de Carson McCullers é tão trágica quanto as suas histórias. A Balada do Café Triste é uma obra relativamente leve, e os personagens mantêm aquilo que podemos chamar de uma “distância”, em seus pensamentos e sentimentos trancafiados a sete chaves, talvez. Não raro se comportam de maneira irracional e, embora seja possível aceitar que isso reflete suas mentes perturbadas, tais características tornam a narrativa ainda mais curiosa para o leitor. Paira no ar uma raríssima capacidade de evocar tempo e lugar, algo inexorável.
A obra de Carson McCullers tem volume respeitável. São cinco romances, duas peças de teatro, vinte contos, mais um punhado de crônicas, artigos e ensaios de não ficção, um livro de poemas infantil, um bom número de poemas aleatórios e uma autobiografia que não conseguiu concluir.
McCullers é considerada uma das mais significativas representantes da literatura americana do século 20. Ela é mais conhecida por seus romances O Coração é um Caçador Solitário, Reflections in a Golden Eye e The Member of the Wedding, além dos contos reunidos em A Balada…, todos publicados entre 1940 e 1951. Pelo menos quatro de suas obras foram vertidas ao cinema.
Nascida Lula Carson Smith em 1917, em Columbus, na Geórgia, McCullers era filha de Lamar Smith, dono de uma joalheria, e de Vera Marguerite Waters. Lula Carson, como era chamada até os quatorze anos, frequentou escolas públicas e se formou na Columbus High School aos dezesseis anos. Incentivada pela mãe, começou a estudar piano formal aos dez anos. Ela foi forçada a desistir de seu sonho de uma carreira como concertista depois que a febre reumática a deixou sem resistência para os rigores da prática necessários a uma carreira de musicista. Enquanto se recuperava da doença, começou a ler vorazmente e passou considerar a escrita sua vocação principal.
Em 1934, aos dezessete anos, a jovem Lula Carson migrou para Nova York estudar piano na Juilliard School of Music. Era o que ela disse à família e professores, mas sua ambição secreta era escrever, longe das idiossincrasias do sul. Vivendo finalmente num ambiente cosmopolita, trabalhou em diversos empregos e estudou redação criativa na Universidade Columbia de Nova York e no Washington Square College da Universidade de Nova York.
Retornou a Columbus em 1936 para se recuperar de uma infecção respiratória. Permaneceu acamada por vários meses, período no qual começou a trabalhar em seu primeiro romance, The Heart Is a Lonely Hunter (O Coração é um Caçador Solitário) que viria a ser publicado em 1940, quando a autora tinha apenas 23 anos. Antes, publicara Wunderkind, um conto que saiu na edição de dezembro de 1936 da revista Story, publicação editada por Whit Burnett, seu ex-professor na Columbia.
Em setembro de 1937 ela se casou com James Reeves McCullers Jr., natural de Wetumpka, Alabama, que lhe conferiu o nome pelo qual ficaria conhecida. Ela conheceu Reeves quando ele estava no exército, servindo em um quartel perto de sua cidade natal.
Desde o início, o casamento foi atormentado pelo alcoolismo, pela ambivalência sexual (ambos eram bissexuais) e pela inveja de Reeves das habilidades literárias da esposa. Mudando-se para Nova York em 1940, quando O coração é um Caçador Solitário foi publicado, divorciaram-se em 1941. Em 1945, reconciliaram-se e houve novo casamento. Sem trocadilhos, inicia ali um período de “pós-guerra”.
É claro que houve confusão e enriquecimento pessoal no período, entretanto. Ainda durante a separação de Reeves em 1941, McCullers mudou-se para uma casa no Brooklyn, compartilhada com o poeta britânico W. H. Auden. Localizada na 7th Middagh Street, a residência tornou-se ponto de encontro literário e boêmio. A frequência incluiu nomes como Gypsy Rose Lee, Benjamin Britten, Peter Pears, Richard Wright e Oliver Smith. No período, Reeves e McCullers, mesmo separados, se apaixonaram pelo compositor americano David Diamond, e formaram um triângulo amoroso. Muita gente encontra paralelo nesse atribulado relacionamento com o triângulo promovido em A Balada do Café Triste. E também na peça teatral/romance The Member of the Wedding.
Após a reconciliação, Reeves e McCullers mudaram-se para Paris. Na França, no início dos anos 1950, Reeves tentou convencer McCullers a cometer suicídio junto com ele. Temendo por sua vida, ela fugiu em retorno para os Estados Unidos. E Reeves de fato cometeu suicídio em um quarto de hotel em Paris em novembro de 1953.
Durante os últimos quinze anos de sua vida, McCullers experimentou um declínio acentuado na saúde, e passou a escrever menos. Teve paralisia causada por uma série de derrames. Ficou arrasada com o fracasso de sua segunda peça, The Square Root of Wonderful, encerrada após apenas 45 apresentações na Broadway em 1957. Também ficou mal devido à baixa receptividade de seu último romance, Clock Without Hands (Relógio Sem Ponteiros, 1961).
Sua última publicação em livro foi um volume de poemas para crianças, Sweet as a Pickle e Clean as a Pig (1964). No momento de sua morte, ela estava trabalhando em uma autobiografia, Illumination and Night Glare. Um evento mais encorajador em seus últimos anos foi o sucesso da adaptação de Edward Albee de 1963 de A Balada do Café Triste para o teatro, que teve 123 apresentações na Broadway. Em 15 de agosto de 1967, ela sofreu seu último AVC. Em coma por quase 50 dias, ela morreu no Hospital Nyack, arredores de NY, e foi enterrada no cemitério Oak Hill, às margens do rio Hudson. Ela tinha 50 anos.
A estreia de Reflexos num Olho Dourado, realizado por John Huston, com Marlon Brando e Elizabeth Taylor, acontece duas semanas depois da morte de Carson McCullers.
Em uma avaliação de sua vida e trabalho que acompanha o obituário de primeira página de McCullers no New York Times de 30 de setembro de 1967, Eliot Fremont-Smith escreveu sobre o impacto de O Coração é um Caçador Solitário, que segundo ele também poderia ser uma avaliação duradoura da influência da autora: “não é tanto que o romance tenha preparado o caminho para o que se tornou o gênero gótico sulista americano, mas o fato de que ao mesmo tempo ela o abrangeu, e foi além dele”.
Em 2017, em comemoração ao centenário do nascimento de McCullers, os moradores de Columbus realizaram uma série de eventos homenageando a escritora, incluindo filmes e palestras. A Columbus State University também pediu a todos os novos alunos do primeiro ano que lessem O Coração é um Caçador Solitário.
Carson McCullers foi amor e solidão. Descreveu essencialmente o sul no qual nasceu e cresceu.
Ganhou o mundo inteiro.
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Ouça. Leia Assista:
O Coração é um Caçador Solitário, Carson McCullers – Estante Virtual
A Balada do Café Triste, Carson McCullers – Estante Virtual
Reflexos num Olho Dourado, dir. John Huston – Trailer
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Imagens: reprodução