O Clube


Um conto pandêmico. Médico infectologista acaba de ser demitido na pandemia. Uma antiga e inusitada promessa marca a vida de respeitáveis senhores fanáticos por rock’n roll

Serra abaixo pela altura de Cubatão, Alberto Boanerges dá um basta às notícias pouco venturosas que saem dos alto-falantes JBL de altíssima definição. A bordo de seu Volkswagen Passat Highline TSI 2.0 — último modelo, adquirido em uma feira de Frankfurt há menos de um ano. Desde o começo da peste, todo noticiário é monotemático. Dedicado às estatísticas frequentes de mortos, casos confirmados de infecção, número de testes realizados, rumores óbvios de subnotificação, polêmicas diversas sobre a reabertura ou não das atividades econômicas. Pequenas variações para previsão do tempo, que aponta escassez de chuva e racionamento de água nos meses que seguem pelo inverno rigoroso e seco em toda região sul-sudeste do país. Além, os disparates do governo e o jogo político em vigência. Ameaças de golpe por um lado, denúncias e flagrantes de falcatruas de outro.

A solução é imediata. Um pendrive repleto de arquivos mp3 em cuja lista consta Hunky Dory, de David Bowie, 1971. Alberto Boanerges conta 65 anos e ainda traz na memória sua vida de infância e adolescência em Santos, a cidade destino da viagem, agora 20 quilômetros adiante. Também sua cidade de origem. Neste inexato junho de 2020, há pelo menos duas décadas não coloca os pés na terra natal. Quando as JBL emitem Changes, primeira faixa, a lembrança é clara: a área do porto. Seus 16 anos incompletos, a encomenda chegando pelas mãos diretas dos atravessadores de antanho. Os discos em formato LP. A pose do estranho artista na capa, com um olho verde e outro azul, em uma fotografia mexida ao sépia, amarelada, que insinuava algum expressionismo, algumas cores difusas de matiz adequado. E que imitava Marlene Dietrich, Alberto descobriu anos depois. Hunky Dory — e depois toda obra de Bowie — lhe caiu como uma bomba, de raro delírio. Uma sofisticação inusitada. Em que pese à época, adolescente ainda, já ter escutado o que havia de melhor, em primeira mão. Dos Beach Boys aos Beatles e Rolling Stones. Mesmo Hendrix e Grateful Dead. Tudo que chegava era visto primeiro por Alberto Boanerges e alguns poucos outros. Das vantagens de se morar em região portuária e ter o pai ligado à logística que movimentava o maior porto da América Latina.

Alberto Boanerges é médico. Casado, pai de duas filhas, todas entregues a suas vidas e carreiras. Cada uma lhe proveu um neto homem. Seus melhores amigos, de cinco e seis anos. Todos fora do país. É casado com Irene Albuquerque, desposada de família paulista de 400 anos, hoje Irene Albuquerque Boanerges. Médica psiquiatra. Vivem bem. Nada de mais ou menos. Uma vida tranquila. Irene está em Campinas, onde cuida da mãe de 90 anos, hospitalizada, que apresentou sintomas do vírus.

Há coisa de mês e meio Alberto Boanerges foi afastado do departamento de infectologia do estado, por discordar da condução da doença imposta pelas autoridades locais. Em idade de aposentadoria, teve rumo adequado e aceito. Não contestou a pequena humilhação, após longos 35 anos dedicados à saúde pública. Deu a carreira por completa. Pendurou o estetoscópio que herdara do avô na biblioteca de casa, confortável recanto no Jardim Pinheiros. Tão perto, tão longe, vinte anos sem visitar a cidade natal. O Passat cumpre a lomba e a curva na autoestrada que margeia Cubatão, oferecendo a cidade de Santos à retina do doutor Alberto. Cha cha cha changes…

Após o trânsito leve, dado ao lockdown recém-decretado, Alberto Boanerges encontra fácil estacionamento na praça Mauá, centro histórico. Antes, reparara surpreso que o Hunky Dory que porta em seu pendrive contém quatro ou cinco faixas extras, que desconhece. Impressionou-se com Bombers. A canção faz menção aos ataques sobre Saigon na guerra do Vietnam. As versões em cedê e mp3 dos grandes clássicos do pop rock sempre trazem surpresas não veiculadas na época do seu lançamento. Ele demonstra certo preconceito com as versões lançadas depois, portador dos originais que é. Mas inadvertidamente aprecia de bom grado os extras deste álbum, que tanto ama. Talvez o mais fundamental de sua vida.

Sua parada é defronte ao Café Carioca, famoso por servir o melhor pastelzinho do mundo. Lembra-se de imediato do pai lhe provendo um de queijo, outro de carne ou palmito, e apresentando-lhe à vista as figuras ilustres que ali mancavam ponto. Mário Covas, Gastone Righi, Plínio Marcos, um Ney Latorraca ainda muito novo, entre tantos outros. A fauna cultural santista dos tempos da repressão, que aflorou às artes do entretenimento nacional e da política do contentamento ou combate, ou as artes do combate e a política do “entretenimento”, a depender da situação. Havia outro recanto, um bar além-porto, beirando o mangue, onde as reuniões eram um tanto mais clandestinas, nas quais era possível encontrar mesmo um Carlos Lamarca, fugido da guerrilha que mantinha ainda na serra, uma centena de quilômetros acima da baixada.

Nivaldo Boanerges — pai de Alberto — foi amigo de todos os oponentes ao regime que lideravam ora ocasiões de revolta estudantil, feito Mario Covas, que ascendeu a deputado em Brasília, ora os radicais que empunharam armas como o capitão Lamarca, dissidente mais notório do exército nacional. Provavelmente o inimigo número um do regime. Mas o pequeno Alberto se encantava mesmo era com a figura de Plínio Marcos, dramaturgo marginal, do qual adolescente conhecera os textos. Eram peças que retratavam a escumalha, o andar de baixo da sociedade, em montagens teatrais censuradas ou encenadas sob atenta vigilância. Plínio já morava em São Paulo e trabalhava em televisão, cujo caráter pop sempre fascinou Alberto em infância. E a vida toda.

Alberto Boanerges transitava pela praça com celular e fone de ouvido ligado em Aladdin Sane, 1972. De posse da valise onde constavam 20 mil dólares, um bem cortado terno azul-escuro e sobretudo de gabardine bege. Who’ll love a lad insane…

Antes de rumar à estiva do porto, onde tem apontamento programado, Alberto Boanerges para. Aprecia a praça e todo o casario que envolve seu entorno, especialmente a antiga Bolsa do Café, hoje um museu dedicado ao mesmo tema. Senta-se a um banco, rodeado de pombos famintos e esquálidos, na falta dos frequentes provedores de migalhas e pipoca, em tempo recente quando ainda havia movimento. Alberto se comove com os pombos, mesmo sendo médico ciente de que estes animais são “ratos com asas”. De toda forma, abre a valise sem pudor que deem à vista as notas de dólares ali guardadas e retira um sanduíche de presunto que guardava para mais tarde, atirando-o alguns metros adiante de si. Os pombos promovem um carnaval em disputa pelo acepipe, quebrando mesmo o silêncio da praça, que repousava solene. Alberto percorre a pé o caminho que dá à região do cais, lentamente. Cabeça alta em gargarejo à belíssima arquitetura oitocentista.

Em outra parada, envia breve mensagem pelo Whatsapp: “Neto, já tô na área, por enquanto tudo bem. Aguardando a águia”. Recebida, em breve a resposta de Neto:

“Tranquilo. Aqui tudo preparado. Murilo chegando agora. Abriremos o primeiro bordeaux. Adão virá mais tarde. Estamos assistindo à reprise de 1978”, é a resposta de Neto. Alberto não resiste e acrescenta: “Vocês são loucos, aquele jogo nós perdemos! Certo que saímos campeões. Vá lá. Tudo certo. Já retorno mais informações”. Caminha tranquilo às três da tarde de um dia nublado e vazio de sábado, pelo trecho, sobre o paralelepípedo centenário de Santos, ao som do Aladdin Sane. Percebe a presença de um carro da polícia coisa de duzentos metros adiante e apressa-se em colocar a máscara médica. The Jean Genie lives on his back…

Em um apartamento antigo no distinto e antigo bairro do Bixiga, em São Paulo, 70 quilômetros serra acima de onde ora se encontra Alberto, Neto e Murilo procuram pelo sacarrolha que lhes proverá o prazer de abrir um bordeaux safra 1979. Algo espetacular, reza a voz dos especialistas. Higiene toda feita, Murilo deixou os sapatos na área de serviço do apartamento, retirou a máscara e circula de meias pela sala, após cumprimentar sem toque de mãos ou abraço o amigo de décadas. Neto resolve empurrar a rolha pra dentro.

— Não! Calma! Isso não se faz com um bordeaux 79. Já resolveremos o problema — alerta Murilo ao amigo impaciente.

— Porra, não sei onde ficou isso. Acho que a Janete levou pra praia — responde Neto, que reservou a casa à reunião da confraria que acontecerá logo mais à noite.

— A Janete por um acaso tem algum sapato salto-agulha? — Murilo.

— Tem sim, por quê? — Neto.

— Vamos lá! Me diz onde está.

— Cara, mas um salto-agulha é pra empurrar a rolha pra dentro igual. Como assim?

— Mas pelo menos é um gesto feito com um sapato de mulher salto-agulha.

Eles riem. E Neto vai ao quarto catar um sapato da esposa, com salto tão fino que não encontra dificuldade em empurrar a rolha pra dentro da garrafa da melhor safra de vinho francês das últimas quatro décadas.

— Safra 1979. O que foi lançado de bom em 79? — Murilo.

— 1979? London Calling! — Neto.

— Tem aí?

— Mas é claro! Fique longe. Não vamos nos contaminar. Pegue sua taça ali — Neto dirige-se à estante de discos, enorme.

— E o Alberto?

— Acabei de responder. Está lá, já. Diz que escreve logo mais.

— Perfeito. E o Adão?

— Deve chegar de Ribeirão Preto daqui a pouco — responde Neto, o bordeaux 1979 aberto. The Clash em vinil na agulha de diamante de um velho Gradiente, “o Rolls Royce dos aparelhos de som”, como ele costuma bradar. Distantes um do outro, taças cheias em punho, brindam: “ao clube!”. London calling to the underworld

Ao aproximar-se da área do porto, Alberto Boanerges refresca mais lembranças de histórias do avô, expoente notório da medicina de sua época. Jovem médico que ajudou a organizar o combate à pandemia da gripe espanhola em 1918, Austregésilo Boanerges contava a quem quisesse ouvir da numerosa família, que o primeiro vapor infectado aportou nas docas de Santos em outubro daquele ano, tempo de guerra mundial há pouco tempo dada como finda. A exemplo do que ocorre no presente, à época o governo central também fez pouco caso do contágio, aderiu a boatos de que a peste era obra de espionagem internacional, arma biológica de guerra e tudo o mais. Apesar dos alertas do doutor Boanerges e alguns combalidos sanitaristas, foram amaldiçoados pela população descrente. A tragédia é sabida imensa. O maior número de mortes epidêmicas que a cidade registrou na história. Um século passado, até hoje não se viu tantos óbitos na baixada. Doutor Austregésilo narrava com detalhes o drama dos leitos da Santa Casa, de corpos sendo levados a covas coletivas para além dos limites da cidade. Cadáveres atirados ao mangue, boiavam inchados sob bicadas dos urubus. A maior parte das vítimas era oriunda de bairros populares, como Campo Grande, Macuco e os morros. Em situação muito mais confortável do ponto de vista social, o próprio doutor Boanerges perdeu a mãe, um dos quatro irmãos e, fatalidade máxima, sua filha primogênita. A “perdida” tia Cida (Aparecida Boanerges), como tratavam em família.

Por detrás de sua máscara e sob o som de Bowie, o sexagenário neto de Austregésilo Boanerges tem calafrios semelhantes às gripes fatais só de imaginar o drama vivido século antes pelos seus. E também agora, ao pensar na população pela qual até coisa de mês atrás era em boa parte responsável. A incerteza do covid-19 que assola um planeta inteiro. Pior, a irresponsabilidade do governo federal, de retórica e posicionamento fascista como não se via sequer em 1918, no país ou no mundo.

Passa tranquilo pelo carro da polícia, que anuncia em alto-falantes palavras de ordem como “fiquem em casa”, “lavem suas mãos”, entre outras. Recolhe certa indignação ao lembrar que não há rua, escola, monumento ou praça com o nome de seu avô, a exemplo dos que existem a outros médicos da época. Reza que apenas uma pequena sala-auditório em uma faculdade de medicina praiana: Auditório Austregésilo Boanerges. Tudo bem. Alberto também acabara de ser vítima de injustiça e incompetência de autoridades, algo muito recente. Dos alto-falantes da polícia Alberto não ouve nada muito bem. Está com os fones, em divertida audição daquela cover dos Stones, que Bowie e sua banda tratam melhor que a original. Let’s spend the night together. Now I need you more than ever…

Na capital, João da Silva Neto e Murilo Meneguetti já estão meia garrafa de um bordeaux 1979, e dois lados de London Calling — um álbum duplo — à frente da humanidade. Assistem ao tape de São Paulo x Santos, final do campeonato paulista de 1978, por um canal de streaming qualquer, em modo mudo. Adão Fagundes chega de Ribeirão Preto no intervalo da partida. Procedimentos e cumprimentos distantes tais e quais à anterior chegada de Murilo. Uma nova taça e agora um cabernet argentino premiado, que Adão traz de presente aos amigos. Um novo brinde é realizado, desta feita aos gritos. “Ao clube!”. But I’m not down, no, I’m not down. I’ve been shown up, but I’ve grown up…

Alberto Boanerges chega à área da estiva, em frente ao armazém previamente combinado. Situado em meio a trilhos de trem, caminhões que saem e chegam, o ambiente portuário a que é afeito desde infância. Mesma região onde ia buscar sedento seus discos de vinil importados ainda imberbe. O local guarda certo movimento, já que a logística é essencial à ordem das coisas, idas e vindas de alimento e outras provisões, mecânicas e tecnológicas. Mesmo uma pandemia não é capaz de parar tudo. Ao contrário do restante da cidade, o porto não lhe parece tão mudado, em visual. Os armazéns e depósitos ciliares que consegue enxergar de longe parecem idênticos. Há uma ausência de cor que soa característica a todo porto. Os guindastes modernos que transferem contêineres de um ponto a outro é que parecem diferentes, em velocidade de operação. Estivadores também aparentam trabalhar menos. A maioria opera empilhadeiras e apenas alguns descarregam caminhões de pequenas cargas no braço, como era quase tudo antigamente. Envia dali mensagem ao contato. “Já estou aqui. Estou vestido como disse. Aguardo”.

De imediato, como estivesse em um filme, um carro preto de quatro portas para do outro lado da via onde se encontra. Um sujeito oriental, com jaqueta de couro preta, desce do veículo, óculos escuros. Olha para onde está Alberto Boanerges, com seu sobretudo de gabardine, à moda de um correspondente internacional dos jornais televisivos de sua época. O sujeito coloca uma máscara médica e vem em sua direção. Carrega uma valise 007 idêntica.

— Sua encomenda, doutor. Conforme combinado. Cem gramas do melhor produto — diz o oriental, ao qual Alberto repara de imediato sotaque paulistano.

— Tudo certo — responde. — Aqui o dinheiro.

— O senhor sabe que fez um belo negócio, não? — olha para Alberto o coreano, retirando os óculos, rosto sob a máscara.

— Tenho absoluta certeza, senhor.

— Podemos desenvolver algo muito proveitoso a partir daqui, não acha?

— Bem, meu senhor. Conforme o combinado previamente, esta será nossa única transação. Entretanto, prometo que caso haja necessidade não hesitarei em procurá-lo novamente.

— Obrigado, doutor. Estamos à disposição.

Pequena abertura em ambas as pastas confirmam os 20 mil dólares ao oriental, e os cem gramas de heroína na valise entregue a Alberto Boanerges. Sem aperto de mão, despedem-se educadamente, após o pequeno ritual de passar álcool-gel nas mãos de ambas as partes, cada qual com o seu pequeno frasco. Alberto toma o rumo de volta até a praça Mauá, onde deixou seu Passat Highline TSI 2.0, último modelo. Sem nervosismo algum, percorre com a mesma calma apreciativa a arquitetura e as lembranças de infância e adolescência, as ruas antigas de sua cidade.

No percurso, percebe um ou outro antro de prostituição e alguns bares funcionando como se nada estivesse acontecendo, atendendo necessidades primitivas de marinheiros, estivadores, bêbados e excluídos de toda sorte. A hora conta quatro e meia da tarde, mais ou menos. Sabedor que noite adentro o movimento tende a crescer, Alberto em sua sensibilidade de médico infectologista constata de imediato o caos sanitário em que tudo aquilo vai se transformar em tempo muito breve. Lembra o vovô Austregésilo. Lembra a briga recente junto às autoridades, que lhe custaram o cargo. O país já conta com 500 mil mortos. O presidente da nação nega a doença. Alberto Boanerges prefere retomar seus fones de ouvido. Agora apropriadamente com Stick Fingers, dos Rolling Stones, 1972. Há amigos de longa data o aguardando. Brown Sugar, how come you taste so good

Adão trouxe também de Ribeirão Preto um barril da cerveja stout que fabrica. Também um pernil de carneiro digno dos bárbaros, que já enfiou em um forno a 180 graus para ser assado em coisa de 3 horas.

— Alberto escreveu! Já está a caminho. “A águia pousou!”, ele disse — comunica Neto aos parceiros, já degustando o premiado cabernet argentino em rolha afundada botelha adentro pelo salto-agulha da esposa. O barril Adão faz questão de apresentar aos amigos, dado que Alberto não é chegado a vinhos, mas cervejas. Murilo comemora:

— Finalmente, teremos a experiência prometida há três décadas!

— Três décadas e meia! — corrige Adão.

— É verdade. Lembro muito bem.

Em 1985, os amigos todos já com seus trinta anos completos, saíam de um show do Barão Vermelho, em Curitiba. Não se sabe ao certo até hoje como foram parar lá. O show foi um tanto malfadado. Cazuza, vocalista da banda, completamente chapado e bêbado, errou todos os números a que tinha direito e além: xingou a plateia e o próprio grupo. Saiu do palco e nunca mais voltou. Seguiu bem sucedida carreira solo e morreu cinco anos depois vítima do HIV. Naquela noite, sob o intenso inverno da capital mais fria do país, Aberto, Adão, Murilo e Neto saíram do ginásio de esportes onde o “quase show” havia quase acontecido e sem grandes delongas ou reclamações foram a um bar situado havia coisa de uma quadra do local. Foi neste dia que Alberto conheceu Irene e Neto viu pela primeira vez Janete. Murilo e Adão circularam pelo movimentado local e também não se deram mal. Quando se viram sentados à mesma mesa só os quatro novamente, Adão vaticinou, do nada:

— Não existe heroína no Brasil! Mesmo com toda abertura política, nunca haverá heroína no nosso país. Heroína não é uma droga bacana. Todos dizem. Então vamos estabelecer um acordo. Vamos montar um clube! Um dia, em futuro a ser definido, no mais completo segredo de nossas futuras carreiras e existências, vamos tomar heroína! Todos!

As meninas que voltavam do banheiro chegam à mesa com todos em risadas sem parar, bêbados e chapados de maconha que estavam. Alberto tomou a palavra.

— Adão, calma! Então, eu sou o médico aqui entre nós. Me comprometo, diante de meus atributos profissionais, a conseguir o melhor produto em vigência na época a ser definida. Quando?

— 2020! — grita Murilo.

— 2020? — retruca Neto. — Mas em 2020 vamos estar todos com mais de sessenta anos!

— Olha! Gostei da ideia — diz Adão. — Depois de velhos não teremos mais problemas com polícia ou coisa do tipo. Nem com injeções! — gargalhadas gerais. — E também não teremos mais preocupações com nossas vidas. Assim espero.

— Olha que gostei da proposta, até — Neto. — Você resolve mesmo, Alberto?

A mesa inteira se ri. Alberto, meio bêbado, Mas solene:

— Me comprometo! Se estivermos todos vivos em 2020 eu vou atrás de heroína suficiente pra todo mundo. Afinal, sou médico! E que todo mundo fique mais maluco que nunca ficaremos em nossas vidas inteiras até hoje. E até lá! — vaticina.

Algum pacto de sangue ou algo semelhante aconteceu. Algo como um contrato. Estava fundado o Clube da Papoula, cuja única reunião seria realizada no então distante ano de 2020, dali a três décadas e meia. Só os rapazes. Nada das moças.

Hoje, nenhum dos envolvidos sabe direito o ocorrido de fato naquela noite em 1985. O fato é que todos lembraram para sempre o ano sugerido: 2020. Até que se esqueceram. Não fosse Alberto Boanerges, após sua aposentadoria forçada, se dar conta e resolver retomar a loucura ora em curso. Cha cha cha changes…

Quando Alberto Boanerges desligou o telefone no qual o secretário de saúde comunicava a ele o afastamento, devido às discordâncias na condução acerca da pandemia de covid-19, Alberto decidiu. “Vou me aposentar e cumprir aquela promessa. Foda-se”. E aos 65 anos completos e 35 anos de serviço, o médico infectologista Alberto Boanerges encerrava sua atividade na medicina. Semana e meia depois telefonou a Neto, com quem não falava há década, desde um jogo do Santos em que se encontraram no Pacaembu completamente por acaso e gozaram uma vitória sobre o Rio Claro, valendo quase nada pelo campeonato paulista. Marcaram encontro, beberam como se não houvesse amanhã, combinaram a promessa feita em Curitiba no show do Barão. Oh man, wonder if he’ll ever know. He’s in the best selling show. Is there life on Mars?…

— Experimentem essa cerveja! — Chega à sala um não menos animado Adão, portando três canecos cheios da sua stout do norte do estado.

— Alguém comprou seringas?

— Não! — todos em uníssono.

De imediato, José da Silva Neto envia mensagem para o doutor Aberto Boanerges. Spanish bombs, yo te quierro y finito…

Alberto Boanerges, já à boleia de seu luxuoso Passat, resolve percorrer a região da Vila Belmiro, do Santos Futebol Clube, onde em infância vira com os próprios olhos o maior time de todos os tempos, rei Pelé e companhia. Para desgosto do avô Austregésilo, descendente de espanhóis cujo estandarte era o Clube Atlético Jabaquara; e do pai, que puxara à mãe lusitana e torcia para a briosa Associação Atlética Portuguesa santista. Alberto Boanerges soube escolher.

Estaciona no entorno do art déco do estádio. De posse de sua credencial médica, compra incríveis duas dúzias de seringas, material para curativo e água esterilizada, sob olhares impressionados dos funcionários de uma pequena farmácia. Entre as graciosas casas decoradas com ladrilhos portugueses nos arredores, não deixa de apreciar a incrível edificação sevilhana, casa onde nasceram em tempos distintos o político Mario Covas e o ator Ney Latorraca. Ilustres adeptos fiéis do grande Santos. He’s in the best selling show…

Na subida da serra não é difícil ao médico aposentado Alberto Boanerges passar pelas barreiras impostas pelas autoridades. A peste fugira do controle. Nenhum guarda sequer questiona a valise com os 100 gramas de heroína ou a sacola repleta de seringas, colocada sobre o banco do passageiro, sem qualquer pudor por parte do doutor. Durante o caminho, mensagem da esposa informando que a sogra não está nada bem. Tudo bem, ele pensa. 90 anos são 90 anos. Não encontra prejuízo na notícia e segue. Ruma firme ao Bixiga. Is there life on Mars?…

Já dentro da metrópole, confere uma segunda mensagem de Irene. “Mamãe piorou, o quadro não é bom. Acho que ela vai morrer”. Ao mesmo tempo, pipocam mensagens dos filhos e netos no exterior, sobre o estado de saúde e enviando boas vibrações para a vovó que está quase morrendo devido ao covid-19, em Campinas. A verdade é que Alberto detesta a sogra. Quatrocentona estúpida, da pior espécie. Nunca gostou do casamento dele com Irene. É velha, tudo bem. Pessoas idosas são pessoas idosas. Mas não é só porque é idosa vamos esquecer o quanto ela já humilhou empregados, subalternos de toda sorte, o quanto apoiou a extrema direita em eleições ou ditaduras diversas, no Brasil e em Portugal, mesmo na Espanha de Franco. A velha era amiga dos filhos da puta. Nunca aceitou Alberto Boanerges, apesar de seu nome ancestral, e do pai classe média altíssima para os padrões do país. Da carreira de médico influente em todos os meios e provedor de categoria acima da conta. Muito além do necessário. Mesmo a uma boneca burguesa como Irene, a mulher mais gostosa do clube Paulistano. O decadente Paulistano, bom que se diga, cuja família Albuquerque ainda insistia associação por orgulho. Os Boanerges da geração de Alberto eram dados aos clubes populares, como o Pinheiros, onde se jogava desde há muito esporte mais vitorioso. Mas o que vilipendiava o orgulho da sogra quatrocentona era algo mais óbvio: eles eram santistas. Caiçaras de pouca nobreza para os padrões bandeirantes. No enfrentamento social paulista do século 20, o caipira — desde que não fosse caboclo, serviçal da roça, do povo — tinha mais aceitação que o pequeno-burguês do litoral. Pela grana. Pelo café. Albertina, ainda por cima era o nome da sogra, um feminino de referência ao nome de Alberto. Ainda determinante, em tempos mais recentes, pós golpe de 1964, a posição progressista do professor e engenheiro de logística Danilo Boanerges. “Aquele comunista”, dizia dona Albertina Albuquerque, viúva já há tempos do pai de Irene. Irene, a gostosa. Uma conquista de Alberto, que realmente amava a esposa, sem as aparências clássicas da sociedade. Dizem que o sogro era muito mais aprazível, apesar de conservador. A mãe de Irene é assim pela perda, ou desgosto de uma vida rica. Rica e mal vivida. Alberto já tem 65. Acabara de se aposentar, meio a contragosto. Mas é fato que neste momento não tem nada a perder. Está como sempre esteve: na outra margem. Antes, o aparelho de som do seu carro já escarrava, vomitava, relembrava uma vida. Fun House, com Iggy & The Stooges. Callin’ from the fun house with my song

Alberto Boanerges estaciona o Passat Highline TSI 2.0. Desliga a turba ignara de Iggy Pop, silenciando em definitivo as caixas JBL. Caminha pela calçada até o interfone, comunica sua chegada. Sobe pelo elevador social do velho edifício no Bixiga. Cumprimenta solene, distante e comedido os amigos Neto, Adão e Murilo, que o esperavam. Retira a máscara médica após higienizar-se completamente, calçados à porta, besuntar as mãos com álcool-gel. Dependura com carinho o sobretudo de gabardine num cabide clássico à entrada. Coloca os cem gramas de heroína sobre a mesa da sala de jantar, onde um pernil fumegante invade a paisagem e o ar, pelas mãos de Adão. Espalha as seringas sobre a mesma mesa, tal e qual.

O celular vibra com nova mensagem. “Querido, mamãe não resistiu. Agora ela está entregue aos anjos…”. Alberto Boanerges desliga definitivo o aparelho. Guarda-o no bolso. Enche um belo pint inglês do precioso líquido escuro oriundo do barril de Adão, “o primeiro homem”, como costuma se referir ao amigo. A espuma é generosa e atraente. Alberto Boanerges ergue o copo.

— Cavalheiros. Acho que esta comida está muito boa. Vamos ao jantar? Um brinde. Ao clube!

— Ao clube! — todos em uníssono. Cha cha cha changes…

Ouça. Leia. Assista:

Hunky Dory –  David Bowie (1971)

London Calling – The Clash (1979)

Imagem: PNGTree