Negro Leo. A câmera subjetiva na teledramaturgia


Adaptação do romance de Chico Anysio utilizou linguagem cinematográfica na televisão, resultando na estética de vídeo-arte em rede nacional

Nos anos de 1960, 70 e 80 o trabalho com o audiovisual era uma aventura que beirava a irresponsabilidade. Quando não eram os loucos envolvidos com a produção cinematográfica em si, de caráter industrial, que já alcançava grande público no Brasil desde O Ébrio (Cinédia, 1946), passando pelos filmes da Vera Cruz, das chanchadas da Atlântida, os arrasta-quarteirão de Amácio Mazzaropi, sucedido pelo iugoslavo J. B. Tanko e Renato Aragão, eram os “mais loucos ainda” do Cinema Novo e suas experimentações de linguagem. Em universos paralelos que se encontravam, havia o teatro, o rádio, e essa “tal de televisão”.

Existe um consenso de que a televisão no Brasil foi construída pelos profissionais do rádio. A maioria mantendo ainda seus empregos paralelos nas emissoras radiofônicas. Alguns técnicos se adaptaram aos equipamentos, outros aprenderam do nada. Atores e atrizes das radionovelas, do teatro e cinema migraram naturalmente para a programação de tevê, seja em comerciais ou na condição de apresentadores, e evidentemente nas primeiras produções de dramaturgia — transmitidas ao vivo desde 1950 até o advento do vídeo-tape em 1959, que só seria amplamente utilizado pelo fim da década seguinte.

Talvez tal fenômeno tenha se dado justamente porque no princípio o “núcleo duro” do cinema bateu o pé e torceu o nariz para a novidade da telinha. Obviamente sentindo-se ameaçados. Era como se inventassem um cinema onde “não se cobra bilheteria”. Mais afeito a transmissões ao vivo, o pessoal do rádio assumiu — não sem alguma dificuldade — aquilo que viria a ser a televisão brasileira. Mas a coisa não ficou por aí, é claro.

Vieram os anos 1960, trazendo para a mesma praia uma rede de arrastão que incluía o rock’n roll, a psicodelia, o beatnik, a poesia concreta, os hippies, a bossa nova, o tropicalismo, a jovem guarda, os jovens. Todo esse liquidificador foi batido e remetido aos olhos do espectador pelos raios catódicos dos aparelhos de antigamente.

Redatores, roteiristas, técnicos de câmera, luz e áudio nunca foram de recusar trabalho, a exemplo de seus colegas atores. A vida não era fácil. Com a popularização das primeiras telenovelas, foi natural uma nova migração para o universo da tevê, agora da área criativa: diretores, produtores e roteiristas, especialmente. Entre eles um jovem humorista desde o rádio — Chico Anysio; e um jovem ator, roteirista e diretor — Daniel Filho. Ambos dispensam qualquer apresentação. Mas seus caminhos se cruzariam de forma determinante mais de 20 anos depois de seus primeiros passos dentro dos estúdios televisivos.

Chico Anysio, já consagrado como criador de tipos e atuação nos seus Chico City ou Chico Anysio Show, pela Globo, era também escritor de grande profusão, com mais de 20 livros escritos e publicados (entre 1972 e 2005). Seu romance Negro Leo (1980) atraiu a atenção de Daniel Filho, que resolveu adaptar o texto para um Caso Especial, também da Globo, em 1986. Chico ainda assinava “Anísio”, com “í”, nos livros.

Conta a história de um bandido que atuava na praça Mauá no centro do Rio de Janeiro. Um negro de olhos verdes, filho de um holandês com uma empregada doméstica, com dezenas de casos na polícia, na boemia, no crime, na cama e, obviamente, na polícia.

Acontece que a narrativa se dá toda em primeira pessoa, sem a aparição do personagem principal. Quem aparece são os personagens que conviveram ou tinham histórias pra contar sobre o famigerado Negro Leo. As cenas iniciais já dão o tom: uma câmera passeia por dentro de uma redação de jornal, parecendo ser os olhos de um repórter, de nome “De Paula”, que recebe a missão do editor de polícia do jornal (Hugo Carvana). A De Paula é entregue uma pequena pasta com informações sobre o bandido, e ele deve ir atrás da história. “Sem romance, sem ficção, só a realidade!” exige-lhe o chefe. E a câmera sai e segue durante todo o episódio, no qual o “agente” é o “olho”. Pronto. Estava criada a câmera subjetiva na televisão brasileira.

A primeira vez que tal recurso foi utilizado deu-se no filme Lady in the Lake (Robert Montgomery, 1947). A partir da ideia de Daniel Filho, Negro Leo é abertamente inspirado nessa obra adaptada do livro de Raymond Chandler, protagonizada pelo próprio Montgomery, que vive o famoso detetive noir Phillip Marlowe. No filme, Marlowe só aparece na apresentação e encerramento da história, sendo tudo o mais depoimentos e representações dos demais personagens. Em Negro Leo, o repórter De Paula não aparece.

Obviamente feita em vídeo U-matic, o equipamento “de ponta” da tevê à época, Negro Leo — sob direção de Paulo Ubiratan e Luiz Gleiser, enredado por Euclydes Marinho — acaba por incursionar pela vídeo-arte, já bastante em voga nos 1980’s. O elenco é repleto de grandes nomes que vão do já citado Carvana até Milton Gonçalves, Lima Duarte, Milton Moraes, Ary Fontoura, Eva Wilma, Paulo Gracindo e a incrível Lilian Lemmertz — que inadvertidamente realizava ali seu último papel, pois morreria logo depois. Entre outros, era aquilo que podia-se chamar de uma verdadeira constelação.

Mesmo com toda experimentação, a recepção — para surpresa de todos — foi calorosa e elogiadíssima. O texto malicioso e cheio de suingue de Chico Anysio, bem pouco alterado na adaptação empreendida por Marinho, Ubiratan, Gleiser e Daniel Filho pareceu agradar aos telespectadores. O programa Caso Especial era apresentado em média uma vez por mês, sempre com uma história diferente, e voltou ao ar após dois anos de hiato graças ao sucesso de Negro Leo, que por sua vez concorreu e recebeu menção honrosa no Festival del Nuevo Cine Latino Americano de La Habana, em Cuba, na categoria-prêmio Caracol, destinada a produções inovadoras.

Devemos muito aos mais diversos “malditos irresponsáveis” do audiovisual brasileiro, que através do improviso imposto pelas dificuldades sempre acabaram por fazer “vídeo-arte” na tevê, deixando a telinha um tanto mais atraente, provocativa e insinuante. Esta câmera subjetiva que é nosso próprio olhar. Mesmo que seja o de outrem.

Ouça. Leia. Assista:

Negro Leo (1986) – completo

Negro Leo, Chico Anysio – livro

Imagens: reprodução