Hooliganismo é uma cultura ainda viva na Inglaterra. Famigerado clube do sudeste de Londres tem os fãs mais exaltados e temidos
A atmosfera de fato não parece nada amigável. Caminhando sob viadutos, ruas estreitas e muitos, muito becos. Tudo perfeito para uma emboscada. Estamos no sudeste de Londres, a partir da estação Canada Water, em Surray Quays, após desembarcar do trem da Jubilee Line, a linha cinza do metrô londrino, que corta a cidade na diagonal nordeste-sudeste. São 20 minutos de caminhada até Bermondsey, onde fica o estádio do Millwall F.C.
O futebol é um grande negócio no Reino Unido. No norte, Liverpool, Everton, Manchester United e Manchester City jogam a cerca de 70km de distância uns dos outros. Em Londres, tudo parece uma imensa feira futebolística. São em média seis clubes na Premier League e quatro no Championship (a segunda divisão), todos chamando a capital de “our home”. Fora as demais divisões e ainda os amadores. Não há bairro sem estádio na Greater London.
O Millwall Football Club é um dos times mais difíceis de se vencer e disputa a Championship . Até há pouco ainda estavam na Terceirona. Na mídia, os apoiadores do Millwall têm sido frequentemente associados ao hooliganismo, com vários filmes e livros a respeito. Os fãs são conhecidos por seu canto “no one likes us, we don’t care” (ninguém gosta da gente, não nos importamos). Os caras são a torcida mais violenta do Reino Unido. Isso significa que devem ser do mundo.
A experiência começa no mitológico pub The Bridge, há uns 3km do campo, onde reúnem-se os torcedores mais hardcore, e de lá eles vão em bando exercitando o cântico intermitente, rumo ao New Den (antes da reforma era The Den). Algumas Guiness na cabeça e lá vamos nós.
O clube foi fundado como Millwall Rovers pelos trabalhadores da J.T. — fábrica de enlatados e conservas de Morton — na área de Millwall, na Isle of Dogs, no East End de Londres, em 1885. A J.T. Morton foi fundada em Aberdeen em 1849 para fornecer alimentos a navios veleiros. A empresa abriu sua primeira fábrica de conservas e processamento de alimentos na doca de Millwall — à beira do rio Tâmisa — em 1872 e atraiu uma força de trabalho de todo o país, incluindo a costa leste da Escócia, principalmente Dundee. Daí a cor do clube ser o azul marinho muito escuro da bandeira escocesa, e o cérebro de seus simpatizantes tão cheios de uísque quanto.
O maior rival do Millwall é o West Ham United, que fica mais ou menos pela mesma área leste de Londres, no Upton Park, alguns quilômetros ao norte do Tâmisa, que tradicionalmente os separa. Desde os primórdios é comum uns se referirem aos outros como “os do outro lado do rio”.
Vamos nos aproximando do local e nota-se um estádio bastante acanhado apesar de organizado e tranquilo, onde cabem umas 25 mil pessoas, se muito. Uma pequena butique que vende souvenires, cachecóis, camisas e material esportivo do clube. Também anexo ao Den há o Arry’s bar, onde os hooligans terminam de encher o caveirão antes de ingressar as arquibancadas completamente bêbados de cerveja vagabunda.
A fama violenta da torcida do Millwall é antiga, secular. Desde uma partida contra os rivais locais do West Ham no Upton Park em 1906 em um jogo da Liga Ocidental. Ambas as torcidas eram formadas principalmente por estivadores, que viviam e trabalhavam na mesma localidade. Muitos eram rivais, trabalhando para empresas concorrentes e competindo pelo mesmo negócio. A confusão explodiu quando o Millwall teve dois jogadores expulsos durante a partida. Algum tempo depois, o estádio do Millwall foi fechado por duas semanas depois que um goleiro do condado de Newport, que havia sido atingido por objetos, pulou no meio da multidão para confrontar alguns dos torcedores da casa e ficou inconsciente. O estádio foi novamente fechado por duas semanas em 1934, após distúrbios da multidão com a visita do Bradford. Invasões de campo resultaram em outro fechamento em 1947. Em 1950 o clube foi multado depois que um árbitro e um bandeirinha foram emboscados fora do campo. Enfim, 120 anos de confusão, dá para se dizer sem medo de errar. Uns amores.
Em 1977, o programa Panorama da BBC dedicou um documentário aos hooligans do Millwall. Seu grupo mais evidente era o Bushwackers (algo como “bicho-do-mato” em tradução livre e irresponsável). A reputação do clube não foi merecida, segundo alguns. O hooliganismo e violência ocorriam em muitos outros campos de futebol em todo o país na época. Ao optar por uma matéria sobre hooliganismo, a equipe se dirigiu ao Millwall porque não é muito longe da BBC. E a (má) fama que já não era pouca cresceu. Segundo a grande maioria dos fãs do Millwall os caras que apareceram no programa falavam um monte de bobagens e todo mundo acreditou.
George Lampey, membro do Millwall Supporters Club e um dos apresentadores da Lions Radio, declarou ao site East London Lines: “a reputação é muito imerecida. Nosso esquema comunitário faz um ótimo trabalho, e as pessoas que trabalham e apoiam o clube são pessoas decentes e honestas”. Não há inverdade no que diz o radialista. No pouco tempo (um mês) que residi na zona leste de Londres pude constatar que trata-se de classe trabalhadora. Comum encontrar os torcedores nos pubs locais e vê-los no supermercado ou no ponto de ônibus, todos muito solícitos e gentis.
Mas, como relata Nick Hornby em seu romance de estreia Febre de Bola (1992), alguma coisa acontece no sábado à tarde e muitos se transformam nos monstros que vemos nos noticiários da tevê. As estatísticas sobre as ordens de proibição do futebol sugerem que o Millwall ainda faz jus à reputação secularmente adquirida, infelizmente. Dentre todos os clubes da Inglaterra, 2.085 pessoas foram banidas de todos os estádios do país. O Millwall tem o terceiro maior número de B.O.’s, com 57. Eles também têm o segundo maior número de prisões na última temporada, com 69 no total.
Certo. Acontece que quando você considera a média de público do Millwall com os outros clubes da Inglaterra, a situação parece ainda pior. As 57 ordens de banimento do Millwall vêm de uma média de público na última temporada de pouco mais de 9 mil pagantes por jogo — 12 vezes menor do que um dos maiores clubes do país, o Manchester United, que teve 38 banimentos de uma média de público de 75 mil em temporadas recentes. Em outro lugar, o Liverpool teve média de 52 mil com 49 banimentos. O Arsenal teve 59 mil com 30 banimentos, e o Newcastle United, que teve o maior número de banimentos com 124, tem uma média de público de 51 mil pessoas.
Ou seja, ninguém gosta mesmo do Millwall. Todos os times têm torcedores ilustres. Ozzy Osbourne torce pro Aston Villa, de Bitrmingham, sua cidade natal. O ex-primeiro ministro Tony Blair é simpatizante do Newcastle. O rei Charles torce para o Arsenal, bem como o citado Nick Hornby. A mãe de Charles, a Rainha, era West Ham. Opa. Talvez o ódio ao Millwall venha daí. O único torcedor ilustre do Millwall é o ator Daniel Day Lewis, que foi revelado ao mundo no filme Minha Adorável Lavanderia (Stephen Frears, 1985), que se passa na mesma região de Londres e expõe os conflitos raciais e sociais clássicos do lugar.
Ao chegarmos ao New Den, não era dia de jogo nem nada, fizemos umas fotos, visitamos a lojinha, e retornamos a Surray Quays, onde descobrimos que uns caras do West Ham haviam quebrado completamente o pub que frequentávamos, em conflito com alguns membros da Bushwackers na noite anterior. O local já estava completamente restaurado, em menos de 24 horas. Tomamos mais Guiness. Muitas.
Na cabeça, além da famosa cerveja stout, a cantoria permanece intacta.
No one likes us. We don’t care…
…
Ouça. Leia. Assista:
Millwall Hooligans – BBC Documentary – 1977
Febre de Bola – livro por Nick Hornby – 1992 – PDF
Green Street Hooligans – dublado
Entre os Vândalos – Bill Bufford