Espião inspirou Ian Fleming na criação do agente 007 e teve participação determinante no ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial. História está registrada no documentário O Dia que James Bond Enganou Getúlio Vargas
Durante a Segunda Guerra Mundial, o britânico descendente de escoceses Ian Lancaster Fleming, nascido em Londres, 1908, serviu ao Almirantado Britânico, na divisão de inteligência naval. Sua experiência com a coordenação e métodos na coleta de informações e códigos de guerra foram fundamentais em sua posterior carreira de jornalista, bem como sua iniciação como escritor.
Em 1953, Fleming publica seu primeiro romance: Cassino Royale. No livro, inspirado no jogo de cartas baccarat, de desenlace rápido e que requer grande agilidade, o escritor apresenta ao mundo o personagem que viria a ser o protagonista recorrente em suas histórias, e se tornaria o maior ícone do gênero espionagem tanto na literatura quanto no cinema.
O agente 007, James Bond, homem com “licença para matar” do MI6 (serviço secreto britânico), pensava-se ter sido completamente inspirado na própria figura de Fleming. Um sujeito com habilidades e inteligência fora do comum, e bem-aventurado com as mulheres. Um agente especial.
Entretanto, o próprio Ian Fleming viria a declarar futuramente que “James Bond é uma versão altamente romantizada de um verdadeiro espião. Na verdade ele é William Stephenson”.
William Samuel Clouston Stanger foi um piloto de caça e espião canadense. Sob o nome “Stephenson” serviu ao Britsh Security Coordination (BSC – Coordenação de Segurança Britânico) para os aliados ocidentais durante a Segunda Guerra Mundial. Devido às suas habilidades, acabou recebendo um codinome de guerra: Intrepid.
Nada demais. Apenas um personagem real que inspirou o fabuloso — e intrépido — bon vivant consumidor voraz de martini seco, servido em uma taça com espessura de cristal finíssima e borda extremamente delicada, acrescido de uma azeitona. Acontece que Stephenson tem um papel bastante fundamental na Segunda Guerra: ele é tido como um dos responsáveis pelo ingresso do Brasil no conflito.
A configuração é a seguinte: Getúlio Vargas, até 1942, resistia a aderir a qualquer um dos lados da guerra, iniciada em 1939. Ao contrário, demonstrava-se bastante simpático aos regimes do Eixo (Itália-Alemanha-Japão), de inspiração fascista. Era preciso reverter o quadro, trazendo Getúlio para o lado dos Aliados (EUA-França-Inglaterra, e depois URSS).
Em 1941, a Itália possuía uma companhia aérea internacional, LATI (Linee Aeree Transcontinentali Italiane), que fazia rota também no Brasil. A empresa trazia ao país material de propaganda fascista e equipamento de espionagem, e “estranhamente” eram levadas na volta à Itália pedras preciosas e minerais que serviam a fabricação de material bélico. Certamente uma trama perpetrada por colaboracionistas infiltrados via descendentes de italianos no Brasil.
Stephenson e sua equipe do BSC descobriram a maracutaia. E o espião enxergou na descoberta um meio de convencer Getúlio a optar de vez pelos Aliados. Uma ideia bastante engenhosa.
Ele resolve falsificar uma carta do presidente italiano da LATI — Aurelio Liotta — para Vicenzo Coppola, diretor da empresa no Brasil. Reproduz com perfeição toda papelaria da empresa, e falsifica com maestria a assinatura do italiano, carimbos, e tudo o mais. Na carta, Liotta ofende os brasileiros e especialmente Getúlio pra valer. Chama o presidente de gordo, denunciava uma conspiração integralista (os fascistas brasileiros) para derrubar o presidente e ainda de lambuja chamava toda gente brasileira de “uma nação de macacos”.
Se essa carta imaginária caísse em mãos erradas certamente teria efeito bombástico. E é aí que entra mais uma etapa da mirabolante operação de Stephenson. É simulado um roubo na residência brasileira de Coppola, que deveria receber a carta, já selada e carimbada pelo correio italiano, conforme rezam métodos das falsificações profissionais.
Coppola presta queixa na delegacia, e um espião, fazendo papel de ladrão, vende a carta a um sorrateiro jornalista a serviço da Associated Press, agência de notícias norte-americana. Este, por sua vez, ao invés de publicá-la, acaba por entregá-la ao embaixador americano no Brasil, Jefferson Caffery. O diplomata acaba entregando a carta a Getúlio. O baixinho fica furioso e resolve acabar com a LATI.
Toda essa história e seus desdobramentos estão contadas no curta-metragem O Dia que James Bond Enganou Getúlio Vargas, com roteiro e direção de Jimi Figueiredo. O curta é parte da série Histórias do Brasil, produzida e exibida pela TV Senado.
O Brasil ingressou na Segunda Guerra aderindo aos Aliados. O diretor Coppola foi forçado a deixar o país, e pode ser considerado um sobrevivente de guerra, pois Stephenson planejava também explodir o avião, para não deixar rastros. Foi preso, mas não permaneceu muito tempo em cana, e viveu até sua morte em 1963 de forma discreta no Rio de Janeiro. Tudo foi revelado em arquivos do FBI alguns anos depois. Os federais norte-americanos auxiliaram o espião canadense neste engenhoso plano.
James Bond foi eternizado nos 12 livros de Fleming sobre o agente, que venderam muito em todo o mundo. E imortalizou-se no cinema em uma série interminável de filmes que perdura até hoje. Atores como o escocês Sean Connery e o inglês Daniel Craig, entre outros, o interpretaram ao longo de quase sete décadas. Ian Fleming faleceu aos 56 anos em 1964, no condado de Kent, na Inglaterra, a tempo de ver seu agente 007 consagrado no imaginário popular.
Não é possível dizer que o Brasil apoiou os Aliados devido à operação pensada por William Stephenson. Mas certamente o agente que inspirou James Bond deu uma mãozinha.
Era o famigerado Intrepid.
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Ouça. Leia. Assista:
O Dia que James Bond Enganou Getúlio Vargas, dir. Jimi Figueiredo – TV Senado
Nova biografia aprofunda o processo criativo de Ian Fleming – reportagem, James Bond Brasil
Cassino Royale, livro, por Ian Fleming