Marquee Moon. Television e sua obra-prima


Com a morte de Tom Verlaine, vai-se um dos criadores de uma das bandas mais elegantes de todos os tempos

A cena é emblemática. Um grupo de roqueiros maltrapilhos tenta convencer o dono maltrapilho de um bar imundo de que eles são a banda certa para tocar no estabelecimento. Com muita insistência de Terry Ork — que se dizia empresário do bando — o cara deixa os rapazes se apresentarem para ele próprio e um assistente, com o salão vazio. O proprietário gosta. O grupo é contratado.

O dono do bar é Hilly Kristal, os roqueiros são Billy Ficca (bateria), Richard Hell (baixo), Richard Lloyd (guitarra) e Tom Verlaine (vocal e guitarra). Eles se chamam Television, o ano é 1974, o bar é o CBGB, mesmo nome do filme de 2013, dirigido por Randall Miller, cuja cena consta pouco depois do início. A cena é real. Aconteceu de fato. “Tem alguma coisa aí’, balbucia Kristal entredentes, ouvindo o som dos caras.

Se uma banda pode ser considerada parte do espírito de um determinado tempo e lugar, o lugar é Nova York (especialmente o Bowery, onde estava o CBGB), o tempo é aquele e a banda é a Television. Se dá pra dizer que há um disco com tudo isso reunido, é Marquee Moon (1977). Gravado após a saída de Richard Hell com Fred Smith já assumindo o contrabaixo desde 1975.

Hell e Verlaine brigaram pelo protagonismo das ideias. Hell foi gravar e inventar a “blank generation” (geração vazia) com The Voidods. Verlaine apenas inventou com seus amigos a obra-prima do guitar rock, que combinou arte e técnica com a energia da então emergente cena punk da Big Apple.

Levou o rock’n roll a lugares que ainda não tinham seu nome na história, à época de seu lançamento em 1977, e para muito além do CBGB. Hoje, a gente toda pode chamar isso de underground, indie, do que toda gente achar e quiser.

O que é inegável é a influência de Marquee Moon. O álbum lançou um feitiço sobre gerações de reinventores das guitarras elétricas, de Pavement a Sonic Youth, de R.E.M. a Nirvana. Tudo que veio a ter seu apogeu nos anos 90.

45 anos depois (estamos no comecinho de 2023) Marquee Moon está em todas as listas de “50 mais” que se prezem. Na capa, de Robert Mapplethorpe, uma foto feito pintura, colorizada. A obra não poderia ter se originado em outro lugar que não fosse a cidade de Nova York do período. Do ponto de vista musical, a cidade em meados da década de 1970 representava um território aberto, um parque de diversões onde tudo era permitido, sem limites para novas ideias.

São filhos diletos da geração imediatamente anterior, New York Dolls, Andy Warhol, Nico e Velvet Underground, que deu um novo sotaque àquilo que se pode chamar de nova-iorquino, em altos volumes de som, ousadia, e principalmente estética.  Inteligente, cool. E como tudo é rock’n roll, é claro que não podia faltar o charme da malandragem, da falcatrua, dos golpes publicitários.

Pouco antes do CBGB, o clube no qual os caras gestaram aquela coisa foi o Reno Sweeney, lendário bas fond na 13th Street. Lá, Richard Lloyd estava no boteco — no Greenwich Village — uma noite com o futuro empresário Terry Ork quando conheceu Tom Verlaine. Ele enxergou no guitarrista uma peça musical complementar, alguém com quem ele poderia tocar em sua busca por um terreno sonoro mais inebriante.

“Eu o vi tocar e sabia que ele tinha aquilo”, Lloyd declarou à Rolling Stone em 2017. “O que não me pertencia, ele tinha. Eu sabia que se você colocasse nós dois juntos, você teria história. Eu soube disso imediatamente”, arrematou. Era início de 1973.

Em alguns meses, a dupla estava passando uns temas ao violão para Richard Hell, um fedelho desses que se via aos montes por NY — “poetinha”, músico, performer, escritor. O trio encontrou Billy Ficca, e a formação inicial estava pronta. Hell foi relutante em assumir o baixo, mas foi o que aconteceu.

No final de 1973, a Television ensaiava por horas diárias. A banda também encontrou uma nova base para experimentar sua música no palco. O CBGB, enfiado em um flop house no Bowery, foi um mergulho sujo, superficial, tosco. Mas foi enfim um palco.

Como referido, a banda conseguiu uma residência no boteco de Hilly Kristal, com estreia em março de 1974. Não tardou para toda a turba de desajustados sociais se amontoar no local. Ramones, Talking Heads, Blondie, Johnny Thunder, Dead Boys, o mesmo Richard Hell e mais.

Eram bandas diferentes que estavam todas em um mesmo lugar, todas se conheciam, tocavam juntas e separadas, apoiavam-se e acabaram formando uma cena. Se já houvera o Greenwich Village do beatnik, jazz e folk no final dos 50’s, a Factory dos loucos 1960’s, agora era o Bowery do punk rock, com toda carga de hedonismo dos 1970’s.

As gravadoras começaram a entrar em contato. A banda resistiu às tentações de contrato. Outras bandas aceitavam ofertas, o Television valorizava o passe em busca de um acordo. A Island Records chegou a preparar tudo para que a banda  gravasse com Brian Eno, mas a banda não gostou do som mais pop que Eno pretendia. A Television sabia o que queria. Era o que parecia. E era de fato.

Veio a Elektra Records em 1976, uma gravadora “amiga”. Lloyd e Verlaine queriam produzir o disco sozinhos, a Elektra deu de bandeja para a banda o experiente engenheiro Andy Johns, falecido irmão do lendário produtor e engenheiro Glyn Johns. Um dos melhores do mundo à época.

Com muita cancha ao vivo após três anos de botecagem, o Television conseguiu gravar de modo rápido em seis semanas — duas semanas para captação, duas de overdubs e duas de mixagem e masterização.

Marquee Moon é uma combinação impressionante de técnica e estética. Simplesmente não dá pra chamar de punk rock.  Tem virtuosismo de guitarra beirando o jazzístico e se move para terrenos muito particulares. É difícil, técnico, mas acessível. Verlaine e Lloyd formam um par de guitarras sensacional, especialmente em faixas como a abertura do álbum See No Evil, a longuíssima faixa-título (10 minutos!) e a de som mais básico e tradicional como Prove It.

Billy Ficca toca uma bateria que aliada ao baixo de Fred Smith concede ao álbum uma cozinha enérgica de sobriedade que encaixa perfeitamente com as guitarras lancinantes de Lloyd e Verlaine. As vozes são um primor. Parecem sobrevoar a tudo, melódicas e bonitas. Marquee Moon é um clássico.

Television ainda gravou o ótimo Adventure em 1978. O registro ao vivo The Blow Up (1982) é uma bosta sonora. Parece uma fita colegial e não faz jus à performance ao vivo do grupo, que tocou no Brasil em 2005, um show memorável. Gravaram ainda 14 anos depois do segundo álbum de estúdio o autointitulado Television (1992), ótimo e suave.

Nada mais foi como antes. E não precisava. Um grupo que realizou Marquee Moon fez tudo.

Tom Verlaine deixou o planeta em 28 de janeiro de 2023. Levou com ele um pedaço do século 20 ao qual cunhou assinatura implacável em sua parte final.

Ouça. Leia. Assista:

Marquee Moon – Television – 1977

CBGB – filme de Randall Miller 2013

Imagens: reprodução