Série exibida pela Amazon Prime aquece corações e mentes em nuances de silêncio e som
Não é novidade o audiovisual brasileiro retratar as classes menos favorecidas, com maestria e inventividade. Desde o Cinema Novo, já vimos Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1962) que dissecou as mazelas da caatinga nordestina inspirado na obra-prima de Graciliano Ramos. Vem de longe ainda Pixote (Hector Babenco, 1981).
Até nos depararmos com a “estética da favela” desde Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) e derivados como Cidade dos Homens para a tevê, e os subsequentes Linha de Passe (Walter Salles e Daniela Thomas, 2008) e Sonhos Roubados (Sandra Werneck, 2009) e — saindo um pouco do ambiente carioca — Amarelo Manga (Cláudio Assis, 2003). Ainda os Tropa de Elite I e II, realizados por José Padilha em 2007 e 2010 respectivamente. Inovadores, criaram linguagem antes de tudo. Como é bom quando isso acontece.
Morros, barracos, cenas de perseguição, violência desmedida e cruel. Tudo favorecia o ângulo inovador das lentes de seus realizadores. Mas havia a contrapartida que dava às obras algum contorno de alento, sob o sol carioca e a magia furiosa do samba, do mar, da paisagem, do baile funk e do carnaval. Algo que dá pra chamar de “alegria” ou irreverência. A reação diante do inferno da vida real. Tudo real, pois sabemos como é, de fato. O brasileiro como um forte que reage transformando em suingue sua rebeldia possível.
Além de termos sempre protagonistas e antagonistas que podiam-se chamar de “mocinhos e bandidos”, fossem eles polícia, cidadão, vítima ou… bandido — mesmo que mocinho, a depender da trama. Seja marginal, seja herói, já disse um artista de classe média que ousou subir o morro. Oiticica não foi o primeiro, tampouco o último.
Até que pequenos ensaios de realidade finalmente caíram como a garoa em São Paulo. Bem depois de Eles não Usam Black Tie (Leon Hirszman, 1981) baseado com fidelidade na peça de Gianfrancesco Guarnieri. O ultrassensível Não Por Acaso (Philippe Barcinski, 2007) já nos apresenta uma ambientação de carros usados, trajes puídos, pouco luxo, outros anseios, e angústias perenes em toda gente. Algo “mais Bixiga menos Jardins”, feito o É Proibido Fumar de Anna Muylaert em 2009.
Vitor Ramil pela mesma época apresentava na Bélgica seu ensaio A Estética do Frio, em que versa principalmente, a partir de sua ótica gaúcha, sempre à margem do eixo Rio-SP que “não há periferia, o que existe é o centro de uma outra história”. Tudo de fato mudou, e outros “centros” apareceram, com as facilidades da internet, todas as mídias eletrônicas e os novos métodos de produção. Mudou a vida e a arte foi atrás, agora podendo retratar via celular.
Mas no centro da maior cidade da América do Sul há uma gente que vive tão à margem quanto a gente que habita a periferia. Daí chegamos a Manhãs de Setembro (Luís Pinheiro e Dainara Toffoli, 2021). Não um filme, uma série, pra começo de conversa. E o toque é no ponto em questão: que gente é essa, em pleno coração de São Paulo?
Manhãs de Setembro é protagonizada por Liniker no papel de Cassandra, uma travesti que trabalha como motogirl, em uma possante de duas rodas que vive pifando. Mora em um dos muitos muquifos da cidade, a exemplo de todos os protagonistas. Obcecada por Vanusa, recria as interpretações da cantora como crooner em uma boate acompanhada pelo guitarrista Décio (Paulo Miklos). Tem um caso com Ivaldo (Thomas Aquino), um homem casado, cuja filha adolescente inicia um namoro lésbico. É amiga do seu guitarrista Décio e de seu namorado Aristides (Gero Camilo), um ex padre que ainda crê nos princípios cristãos, sobremaneira.
Cassandra vive sua vida “normal”, até que aparece Leide (Karine Teles), garota com a qual Cassandra (ainda chamado Clóvis) tivera uma relação sexual que gerou um filho, o pequeno Gersinho (Gustavo Coelho). Leide mora dentro de um carro velho com o filho e procura Cassandra em seu apartamento para apresentar-lhe o “pai”, e pedir para que cuide do menino enquanto procura empregos diversos — e encrencas. Cassandra se vê numa enrascada fora de seus planos iniciais.
Eis o núcleo básico de Manhãs de Setembro. Pressuposto primeiro: não há heróis, e os protagonismos e antagonismos se dão por natureza situacional. Pressuposto segundo, e definitivo: ninguém tem nada. Estamos de fato diante do “andar de baixo” da sociedade, retratado em roteiro e diálogos brilhantes escritos por Alice Marcone, Carla Meirelles, Marcelo Montenegro e Josefina Trotta.
Para não dizer nada: Cassandra tem uma moto velha, Leide o carro podre onde mora, e Décio uma belíssima guitarra Gibson com a qual acompanha Cassandra na boate. Estáveis — aparentemente — apenas o casal Décio e Aristides. Ivaldo, em vida dupla, até que aparenta. Tudo o mais parece insustentável, aguardando explodir ou derreter, voltando à invisibilidade dos desvalidos da Pauliceia.
A trilha sonora é praticamente toda baseada no clássico álbum de 1973 de Vanusa. E na primeira cena do primeiro episódio já entra o petardo What to Do, de Papi e Alf Soares, sob cuja levada surgiu a lenda de a canção ter sido plagiada pelo Black Sabbath. As versões cantadas por Liniker/Cassandra na boate são comoventes, e dão um sentido de arte e criação coletiva à produção. O que não falta em Manhãs de Setembro é criatividade.
Em que pese a força da música, a estética carrega um silêncio de cortar com faca. As interpretações são primorosas, de rigor impressionante. Não há um ponto sem nó. O tempo das conversas é preciso. Mesmo os tradicionais “clipes” que precedem os momentos finais de cada episódio em qualquer série que se preze no século 21 — normalmente chatos — como passando em revista a geral da história, vêm carregados de beleza na fotografia de Lito Mendes Rocha, e ganham sabor diferenciado sob os grooves acachapantes “daquele disco da Vanusa”.
Karine Teles é um caso à parte. Umas das maiores interpretações já vistas em telas nacionais. Desfila estilo e personalidade, rouba a cena em composição de personagem apaixonante. Sua Leide é responsável por todas as reviravoltas na história, ao menos nessa preciosa primeira temporada. Consegue imprimir um clima de “vilã de novela das seis” a uma mulher tão complexa, confere leveza a um ambiente cuja atmosfera sufoca o mais cínico e cético dos seres humanos. Dá vontade de tomar uma cerveja vagabunda com ela.
Nos afeiçoamos a cada um dos membros desta fauna paulistana, enfim “visível”, em cinco episódios primeiros. Fica a enorme expectativa pela segunda temporada. Manhãs de Setembro cheira a divisão-de-águas no audiovisual brasileiro. Com o sobrevoo constante do “drone” de Vanusa, abençoando cada detalhe. A sorte está lançada.
Como é bom quando isso acontece. Um amanhecer como aqueles. Estamos mesmo precisando.
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Ouça. Leia. Assista:
Manhãs de Setembro – trailer
Vanusa – 1973 – álbum completo
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Imagens: reprodução