Lições do Abismo: um percurso na exposição ‘Uma coisa que pulsa’ (Coluna da APPOA)


“Para navegar contra a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão”.

Edson Luiz André de Sousa (*)

O último livro que minha mãe estava lendo antes de falecer tinha o sugestivo título Lições do Abismo. Ela não conseguiu completar a leitura.  Parou no quarto capítulo que começa com a seguinte frase “minha janela é um camarote”.  Lembrei-me deste livro logo depois que saí da exposição Uma coisa que pulsa em cartaz  no Museu da UFRGS  e que reúne 17 artistas frequentadores da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico  São Pedro (HPSP). Estamos diante de contundentes  lições do abismo. Cada trabalho faz um registro comovente e eloquente de um olhar sobre o mundo e para o mundo através das janelas que cada uma destas pessoas precisou inventar para dar conta de seus sofrimentos psíquicos. As suas janelas são as obras que eles  oferecem generosamente ao mundo.  Formas e cores que tem a função de testemunhar,  através da  linguagem,  as travessias que enfrentam para encontrar um lugar de reconhecimento e autoria. Esta mostra tem a curadoria de Barbara Neubarth, Blanca Brites, Mário Saretta, Tatiane Silva e Vanessa Aquino e nos permite ver um pequeno recorte do acervo de 200 mil trabalhos catalogados na oficina.

Diante de abismos precisamos buscar anteparos. Sabemos que nem sempre estes são possíveis quando a sociedade não escuta e não reconhece o enredo destas travessias. E são muitos os que despencam sem serem ouvidos e acolhidos. Os hospitais psiquiátricos durante muito tempo foram  lugares de exclusão, abandono e  violência e não são poucos os relatos que temos destes cenários. Michel Foucault em seu livro  História da Loucura narra um pouco deste enredo. No Brasil, até muito pouco tempo,  as instituições psiquiátricas eram imensas “cidades manicômios”.  Para ter uma ideia desta geografia do abismo basta lembrar que a Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro e a Colônia do Juquery em São Paulo chegaram a ter entre 20 mil a 30 mil pessoas internadas e com equipes de atendimento insuficientes para dar conta desta multidão.  Lembro que quando fiz meu estágio de psicopatologia no HPSP no inicio dos anos 80 eram em torno de 6 mil pessoas vivendo no hospital,  algumas delas praticamente a vida inteira. No Brasil um marco fundamental na mudança deste cenário foi a lei 10.216 de 2001 que ficou conhecida como a lei da Reforma Psiquiátrica que garantiu vários direitos aos pacientes, participação da família no tratamento, proteção contra abusos e, sobretudo,  uma politica de saúde que promovesse a reintegração destas pessoas ao convívio social. Seguindo esta perspectiva foram criados serviços de tratamento substitutivos a lógica manicomial que são os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

Antes disto,  ainda é preciso lembrar,  o trabalho pioneiro da psiquiatra Nise da Silveira. Ela foi uma fonte de inspiração para que fosse possível instituir outro olhar para esta realidade. Em 1944, ao assumir a direção da terapia ocupacional do Centro Psiquiátrico em Engenho de Dentro no Rio de Janeiro,  criou espaços de expressão através da arte:  janelas utópicas para enfrentar abismos. Anos depois, já com uma coleção de trabalhos produzidos por estes pacientes, fundou o Museu de Imagens do Inconsciente. Este museu conserva um  acervo imenso de trabalhos artísticos que podemos ver, ler e  escutar como cartas endereçadas ao mundo. Em 1956 ela criou a Casa das Palmeiras, ideia embrionária do que vem a serem os CAPS, anos depois.  Este pensamento  da Nise da Silveira inspirou o  trabalho pioneiro da oficina  que ano passado ganhou o estatuto de museu estadual. Em um dos escritos de Nise destaco uma imagem que certamente é a bússola destas experiências que menciono aqui: “para navegar contra a corrente são necessárias condições raras: espírito de aventura, coragem, perseverança e paixão”.

 

Esta coisa que pulsa nos reserva muitas surpresas. Em um dos trabalhos vemos um bordado de Maria Luzia Soares, uma comovente ‘Epidemia de  Cores”. Evoco com este título o documentário  de Mário Saretta sobre o trabalho da oficina, lindo registro que ganhou o prêmio Pierre Verger da Associação Brasileira de Antropologia. Luzia borda 13 casas  com janelas e portas coloridas e as equilibra em uma espécie de torre de babel. Recria assim lugares de aconchego onde podemos imaginar as muitas vozes que buscam um lugar de pouso. O trabalho é minucioso, cada ponto de costura como uma letra neste alfabeto que precisa ser reinventado para acolher o estranho que nos habita e, quem nem sempre reconhecemos: pulsações do inconsciente.

Frontino Vieira pensa a cor como uma explosão. É esta a sensação que sinto ao ver suas pinturas. Como se ele nos convidasse a nos aproximar de suas  imagens e recolher as cinzas depois do incêndio. Esta é a função de quem testemunha, cuidar destes vestígios que ficam ali a espera de um olhar que  recoloque  estas experiências em movimento.  Uma marca de pé, (seria o dele?), em uma massa de cor cinza me evocou o poema/filme de Marguerite Duras  de 1978, As mãos negativas. Duras evoca as marcas de mãos de nossos ancestrais encontradas nas Grutas de Gargas junto aos Pirineus no sul da França. Anoto aqui um fragmento deste belo poema

“… Essa mãos

do azul da água

do preto do céu

planas

colocadas divididas sobre o granito cinza

para que alguém as visse

eu sou aquele que chama

eu sou aquele que chamava que gritava há trinta mil anos…”

Frontino entra nesta conversa com seus pés negativos, uma escrita de vida que insiste em enunciar “eu estou aqui”. A busca de um contorno para o corpo diante de experiências de turbulência psíquica: as explosões de dentro.

Tive a chance de conhecer mais de perto Luiz Guides que viveu por mais de 60 anos no hospital.  É o nosso artista do infinito, pois ensaia com suas pinturas um pensamento sobre o tempo. Ele trabalhava e vivia em um profundo silêncio  mas suas pinturas falam ruidosamente. Metódico em seu trabalho, ele constrói imagens que sugerem  relógios sem ponteiros, relógios em estado de ruina que se desmancham literalmente nas camadas cromáticas que vai criando em suas pinturas. Assim, evidencia ao mesmo tempo nossa ambição e impossibilidade  de reter o tempo que passa.

Onde fixar o olhar diante de uma ruína? Natália Leite olha  para o céu buscando algum espaço de sonho. É ali que  busca seus pássaros  que estão sempre pousando em suas imagens de bordados, desenhos e pinturas. Talvez o primeiro movimento  seja o de olhar para cima, para bem alto, para o céu e tentar buscar, no  intervalo entre os escombros e o infinito do azul,  o fio de uma história. Nunca sabemos exatamente por onde começar a contar a história, pois a trama de vida vai se adensando em fios que se acumulam um sobre o outro. Por vezes, um detalhe, uma ponta de fio solto,  abre um caminho possível, sugere uma palavra, uma imagem, inaugura uma narrativa. Natália desenhou para o mundo uma galáxia infinita nos mais de 14 mil registros que deixou pulsantes na oficina . Ela frequentou a oficina desde sua inauguração e  viveu no hospital a maior parte de sua vida. Sua primeira internação foi em 1956 e faleceu em janeiro de 2022, ainda como interna. Suas milhares de obras são registros preciosos  guardados, um a um, como bólides explosivos de pensamentos que armazenamos em alguma despensa pois é com este alimento que vamos precisar nos nutrir em nossas fomes de futuro. Natália viveu e trabalhou como  um vulcão silencioso. Os ruídos do seu universo psíquico vertiam para o mundo uma ânsia de imagem, uma necessidade de registro, uma determinação em preencher os espaços de seu sofrimento com imagens e palavras. Tive a chance de vê-la trabalhando em algumas oportunidades e era comovente ver a força de seu desejo tomando forma nas pinturas, costuras, desenhos. Este acervo imenso está guardado, catalogado e a espera de novas composições narrativas como um alfabeto à espera. Temos agora que colocar a mão nestas imagens e ouvi-las como se ouve o estrondo do relâmpago depois da explosão de luz.  Ao ver as obras de Natália nesta mostra lembrei-me do ensaio de Patrick Boucheron “Como se revoltar?” e especialmente em uma passagem onde discorre sobre a arte de ler e escutar lentamente.

“Vamos então nos aproximar lentamente e escutar. No início, não se ouve nada: isso já é conhecido, a história é escrita pelos vencedores, e só se conhecem as revoltas pelos arquivos….”

Estas pontuações que faço aqui são um pequeno fragmento deste arquivo. Esta coisa que pulsa nos convida a ouvir e ver  as histórias que ainda vamos precisar escrever, guardar pois é ali que vida pulsa com mais força.

(*) Psicanalista. Membro da APPOA. Autor entre outros de “Furos no futuro: psicanálise e utopia”(Artes&Ecos, 2022), “Imaginar o Amanhã” em  coautoria com Abrão Slavutzky (Diadorim, 2021)