La Movida Madrileña. Pegando o touro da modernidade pelo chifre


Como democracia e cultura podem mudar completamente o patamar de um país é explicável compreendendo o movimento que deu cores à Espanha no início dos 1980’s

A Espanha passara 36 anos sob o fascismo de Francisco Franco. Fora um país que não ingressou na Segunda Guerra (1939-1945), mas pouco antes, entre 1936 e 1939, teve dentro de seu território um dos mais sangrentos conflitos do século 20, a Guerra Civil Espanhola, no qual viu seus filhos em combate entre os conservadores que reagiam ao governo eleito da II República, e as organizações anarquistas junto ao Partido Comunista Espanhol (PCE), que com auxílio de Moscou ofereceu grande resistência aos fascistas comandados por Francisco Franco. Os nacionalistas venceram com auxílio de Hitler e Mussolini e implantaram o regime ditatorial que durou até a morte de Franco em 1975.

Foi durante essa transição da ditadura para a democracia que Madri experimentou a grande efervescência cultural que mudou paradigmas, transformou o modo de vida de todo um país, e fez surgir novíssimas caras no cenário artístico.

A essa etapa da história da Espanha, que teve início em 1980, deu-se o nome de “La Movida Madrileña”. O movimento comemorou seu quadragésimo aniversário em plena pandemia de 2020 sem que as pessoas pudessem comemorar pelas ruas, como era do feitio no período — e depois para todo sempre.

A movida mudou as diretrizes artísticas e sociais de um país que viveu sob o signo do atraso por quase quatro décadas, e que se deu ao sol da modernidade graças às novas tendências da arte, em suas mais diversas manifestações: cinema, música, fotografia, pintura, HQ, moda…

O político, professor e filósofo socialista Enrique Tierno Galván presidiu a Câmara de Madri — o que equivale ao cargo de prefeito — à época. Galván teve papel fundamental no apoio e no desempenho que La Movida teve durante toda década de 1980. Esteve no cargo entre 1979 e 1986, quando faleceu com apenas 67 anos. Todos que viveram o movimento o têm como responsável por inserir a Espanha de volta no cenário internacional.

Estudiosos da Movida Madrileña costumam ter como ponto pacífico que seu início se deu em um show musical em 9 de Fevereiro de 1980. Uma homenagem a José Enrique Cano Leal, (Canito), baterista do Tos (depois Los Secretos), banda de pop rock. A morte de Canito em um acidente de trânsito, em janeiro fez reunirem-se várias bandas no concerto, como Nacha Pop ou Alaska y Los Pegamoides. Era pra ser uma simples homenagem de obscuros grupos de músicos de rock, obscuridade essa dentro de seu próprio país. Foi um arraso. O show fez história e de certa forma recuperou a imagem que a Espanha havia perdido ao longo do período franquista. De repente, o país das touradas tinha também o rock new wave que imperava naquele limiar de década.

Como não podia deixar de ser quando o núcleo é de latinidade, a Movida teve seu ponto nervoso nos bares. Destes, o “quartel general” podia ser considerado o lendário RockOla, onde artistas locais como Nacha Pop, Loquillo y los Trogloditas, Los Secretos, a cantora Alaska e internacionais como Iggy Pop, Echo & the Bunnymen e New Order davam suas caras e novidades.

O bairro central da muvuca toda era o Malasaña. Lá, há algum tempo é aguardada a construção de um museu dedicado ao movimento. Fotos, design, móveis, fanzines, discos, livros, filmes e peças de coleção vão constar do acervo. O espaço não vai se limitar a exposições, mas encontros, lançamentos de filmes, debate etc.

“O problema é que as gerações que conheceram La Movida estão chegando ao fim e daqui a 30 anos, se não mantivermos viva essa chama, ninguém se lembrará de um fenômeno transversal que foi a transição da arte, da cultura, que anunciava que um país que vivia em preto e branco de repente estava se abrindo para o mundo”, revelou em entrevista ao jornal espanhol Telemetro a conselheira de cultura de Madri, Marta Rivera de la Cruz, que capitaneia o projeto do memorial/museu de La Movida Madrileña.

Os nomes que surgiram romperam fronteiras da Ibéria, e acabaram por ocupar os primeiros lugares nos respectivos territórios de atuação. Na moda: Ágata Ruíz de la Prada, Guillermo Montesinos ou o falecido Jesús el Pozo. A música de Nacha Pop, Rádio Futura, Manolo Tena, Mecano e Gabinete Caligari, entre outros. Nas artes visuais os fotógrafos Ouka Lele e Sergio García Alix ou o pintor e escultor Antonio López, que em menor grau trouxeram nova estética. E há ainda Eduardo Cimadevila, o cara que fotografou tudo.

Dentre todos os expoentes o que mais conhecemos é Pedro Almodóvar, o mais bem-sucedido e importante cineasta espanhol desde Luis Buñuel. Seu primeiro filme retrata o clima de La Movida Madrileña. Em Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980) Almodóvar conta a história de um trio de mulheres (Pepi, Luci e Bom) que se revolta contra a opressão masculina, em situações que levam a um relacionamento lésbico e transgressor, e acontecimentos que as tornam inseparáveis. A obra já traz demonstrações claras do humor ácido e o sabor pelo kitsch do artista, que teria boa parte de sua afirmação naquela década.

Não é possível falar da música espanhola do período sem citar Alaska, codinome da cantora María Olvido Gara Jova, mexicana nascida em 1960 e radicada em Madri desde 1973 que, influenciada por Lou Reed e David Bowie, introduziu a linguagem pós-punk no cenário castelhano. A maior estrela de La Movida e a grande diva do rock espanhol de todos os tempos. O pai de Alaska era espanhol, mas exilou-se no México devido à ditadura, bom observar. Sua mãe era cubana. Tudo faz sentido. Filha de uma Revolução, Alaska foi o maior símbolo musical de outra.

Junto com La Movida veio também um lado obscuro, que assolava o ocidente “livre” já havia algum tempo. O lado daqueles que se envolveram pesadamente com as drogas, principalmente a heroína. Muitos de seus expoentes, como Julián Infante, do grupo argentino Tequila, ou Enrique Urquijo, do grupo Los Secretos, e ainda Antonio Vega, conhecido internacionalmente por sua canção La Chica de Ayer, morreram por junkies que foram. O uso de drogas marcou aquela década e ajudou na disseminação de doenças como o HIV e as hepatites, um “clássico” muito comum nos 1980’s.

A Espanha cresceu e evoluiu para se tornar o principal destino turístico da Europa, sediar a Copa de 1982 e as Olimpíadas de 1992 (em Barcelona), deixar as touradas de lado, expandir-se, modernizar-se, tornar-se modelo de desenvolvimento.

Sempre a partir de sua cultura, diversa e misturada. Se tudo isso não foi necessariamente fruto de La Movida Madrileña, é fato também que aconteceu apenas depois dela.

Tudo perfeitamente explicável. Não há nada como a liberdade.

Ouça. Leia. Assista:

La Nueva Ola en Madrid

A Rota de la Movida Madrileña

Arte Visual de La Movida Madrileña

Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas de Montón – 1980, Pedro Almodóvar – trailer

Alaska y Los Pegamoides – Musical Express

Imagens: reprodução