Artista participa de podcast na Cultura930. Sua obra continua ainda mais relevante, com o retorno de desejos por ditadura e intolerância, que voltaram com força no mundo recente
Rio de Janeiro, ginásio do Maracanãzinho, setembro de 1969. Após uma apresentação marcante de Jorge Ben & Trio Mocotó, com Charles Anjo 45, sobe ao palco um moreno barbudo, de óculos de lentes grossas, trajando bata indiana e acompanhado por quatro integrantes de uma banda de rock, sem camisa e com badulaques indígenas pelo corpo. Ainda um percussionista maluco que destruía tumbadoras e agitava pelo palco. A banda era Os Brazões, o percussionista era Naná Vasconcelos e pelo jeito fora incorporado ao grupo na hora. O cantor, moreno de óculos e bata era Jards Macalé, ainda chamado apenas Macalé.
Havia ainda uma orquestra que atacou uma paródia do tema do Batman, seriado de tevê que fazia algum sucesso à época, em arranjo de Rogério Duprat, regida por Herlon Chaves. As guitarras distorcidas da banda e a percussão furiosa adentram logo em seguida. O tema é Gotham City, letra de José Carlos Capinam e música de Macalé. Um falso refrão: “Cuidado! Há um morcego na porta principal!”.
Jards Anet da Silva é nascido na zona norte do Rio, Tijuca, em 1943. Aos 8 anos foi com a família para Ipanema, onde cresceu sob os acordes da música dos morros e da bossa nova que nascia no asfalto. O apelido Macalé é uma alusão ao nome de um jogador do Botafogo, que prendia muito a bola, como o jovem Jards costumava fazer nas peladas. A tiração foi adotada artisticamente.
Com os amigos Chiquinho e Jota, baterista e flautista respectivamente, Macalé começa a se esmerar no violão. Com eles engatou um primeiro grupo: Três no Balanço. Depois, Conjunto Fantasia de Garoto.
Estudioso, aprende partituras: em aulas de piano e regência com Guerra-Peixe e Ester Scliar. Chegou a aprender violoncelo com Peter Dauelsberg e aprimorou ainda mais seu exótico violão com ninguém menos que Turíbio Santos.
Em 1965, Macalé é escalado para substituir Roberto Nascimento no espetáculo Opinião, que fazia muito sucesso. A baiana Maria Bethânia foi igualmente convidada a substituir Nara Leão. Nascia ali uma grande amizade. Jards já conhecera Caetano Veloso, irmão de Bethânia, dois anos antes.
Na noite louca do Maracanãzinho em 1969 no IV Festival Internacional da Canção, o público vaiou sem piedade. Jards não se fez de rogado e transformou as vaias em parte da música. A performance entrou para a história dos festivais e da música brasileira.
Em 1971 vai a Salvador visitar Bethânia com a esposa Giselda, em um Carnaval. Ao chegar, recebe um recado de Caetano, que estava em Londres exilado: era pra Macalé fazer as malas imediatamente e ajudar o compositor baiano nas gravações e produção de um novo disco. Macalé foi.
Assim, britanicamente, mas com tempero brasileiro nasceu o álbum Transa, lançado em 1972. Ali, empreende arranjos geniais de violão, mantém a unidade de um caótico grupo e ajuda de fato Caetano a conceber uma obra-prima.
Um problema na impressão da capa pela Phillips acabou por não creditar os músicos e a produção de Jards Jacalé na capa do álbum. O episódio fez Macalé acreditar ter sido proposital, e brigar com Caetano, ficando anos sem falar com ele. Este fato pode ter azedado a vida de Jards, mas a gravação de Transa acabou por reunir o percussionista Tutty Moreno (que tocava no disco) e o guitarrista Lanny Gordin (que transitava pela área). Eles formariam um novo grupo.
O trio faz nascer no mesmo ano de 1972 o primeiro álbum: Jards Macalé. Com este álbum, Macalé reúne duas obras-primas realizadas em um mesmo ano, ambas sob sua batuta.
Grava ainda Aprender a Nadar (1974), Contrastes (1977) e Let’s Play That (de 1983, com Naná Vasconcelos). Depois, cai em longo ostracismo. Até ressurgir na segunda metade dos anos 1990.
Desde Gotham City até hoje, muita água rolou. Provavelmente o poeta Capinam nunca imaginaria que haveria novamente “um morcego na porta principal”, mais de meio século depois.
Jards Macalé vai estar na Cultura930, pelo podcast Bem Bolado nesta quarta-feira dia 15 de setembro, às 13 horas. Sintonia também no AM 930 ou pelo cultura930.com.br . Ele vai conversar com Alessandra Dias, Wagner Rengel, Mariane Antunes e Michelle Gutmann.
A saída é pela porta principal.
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Ouça. Leia. Assista:
Jards Macalé – Há um Morcego na Porta Principal – Documentário, 2008
Jards – Erick Rocha. Documentário, 2013
Gotham City – IV Festival Internacional da Canção, 1969
Jards Macalé – álbum de 1972
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Imagens: reprodução (fotos IV FIC: Ruy Mendes)