Duas das tecnologias mais importantes nos dias de hoje só saíram do papel graças a uma mulher judia que se refugiou nos Estados Unidos. Como atriz, também foi pioneira na sétima arte
Hedwig Eva Maria Kiesler nasceu em 1914 na Viena do então império Austro-Húngaro. Ainda pequena, ficou fascinada com a tradição do teatro e a novidade do cinema. Desde nova também era interessada em tecnologia e invenções. Uma espécie de espírito daquela mesma época, pós vitoriana, na exata transição do vapor para o motor, e com alguns aeroplanos de Dumont e outros malucos já sobrevoando os céus da Europa, que entraria em guerra naquele mesmo ano.
Sua mãe era professora de piano, e por incentivo dela Hedwig logo começou a ter aulas de atuação em Viena. Não demorou muito para que conseguisse seu primeiro papel importante em uma peça, quando o produtor teatral austríaco Max Reinhardt a escalou para The Weaker Sex, com o nome de Hedy Kiesler.
A indústria do cinema crescia em toda Europa. Algumas ofertas de filmes vieram para Hedy logo em seguida. Em 1933, aos 18 anos, conseguiu o papel principal em um filme tcheco. A obra era um drama romântico altamente controverso chamado Ecstasy, de Gustav Machatý. Hedy foi mostrada nua, e também encenou o primeiro ato não pornográfico de sexo em um filme, bem como a primeira representação na tela de um orgasmo feminino.
Nada mais do que os rostos dos atores foram mostrados. Mas foi o suficiente para o Papa Pio XII denunciar o filme. Na Alemanha, Hitler também o proibiu. Nos EUA, a obra teve exibição limitada, anos depois. Ecstasy é considerada uma produção inovadora e, posteriormente, o filme ganhou reconhecimento mundial. Hedy já havia feito um nome.
Ainda em 1933, conheceu seu primeiro marido, um rico comerciante e fabricante de armas austríaco de 33 anos chamado Friedrich Mandl. Os pais de Lamarr, ambos descendentes de judeus, desaprovaram a união principalmente devido às fortes visões fascistas de Mandl e aos laços com Mussolini e Hitler.
A atriz mais tarde descreveria Mandl como uma mente controladora e possessiva, que a mantinha prisioneira em sua própria casa. Ele não apenas a impediu de ir e vir, como supostamente gastou uma pequena fortuna tentando comprar todas as cópias existentes de Ecstasy em uma tentativa frustrada de abafar o filme.
Além do quê, o clima estava insustentável na Áustria, ainda antes da anexação por Hitler, mas já impregnada do nazismo que imperava no país vizinho. Hedy empreendeu fuga. Consta que drogou sua empregada com pílulas para dormir antes de roubar sua roupa, forrando o interior com joias e depois fugindo na bicicleta dela.
Foi para Paris antes de se mudar para Londres em 1937. Na Inglaterra, conseguiu marcar uma reunião com Louis B. Mayer, o chefe da MGM, que estava em Londres a negócios. A princípio, Meyer não tinha certeza de que Hedy poderia atuar nos Estados Unidos depois da repercussão de Ecstasy. Mas, conhecido galanteador e notório otário diante de uma mulher bonita, Meyer acabou oferecendo à atriz um contrato de seis meses de 125 dólares por semana. Hedy recusou a oferta.
E conseguiu enfim embarcar no mesmo transatlântico que Meyer, rumo à América. Vestindo todas as joias que conseguiu contrabandear com ela, Hedy convenceu Meyer a oferecer-lhe um contrato de sete anos a 500 “doletas” por semana. Uma fortuna à época. Surgiu durante a viagem a ideia da troca do nome de Kiesler para Lamarr. Foi sugestão de Meyer, para se distanciar de sua reputação por Ecstasy. Hedy Kiesler era agora Hedy Lamarr, nomeada em homenagem à famosa estrela do cinema mudo Barbara La Marr.
Pouco tempo depois, Hedy chegou a Hollywood e logo estava sendo apontada como a “mulher mais bonita do mundo”. O primeiro filme hollywoodiano de Hedy Lamarr foi Argel (1938), no qual desempenhou o papel de uma sedutora. Nasceu uma estrela, embora este filme invariavelmente a tivesse rotulado para produções futuras.
Lady of the Tropics (1939) veio em seguida, onde novamente interpretou uma bela sedutora de origem exótica, rótulo de herança europeia e obviamente dado ao sotaque germânico. Boom Town, com Clark Gable veio em 1940, Come Live With Me com James Stewart e Ziegfield Girl com Judy Garland em 1941. Um de seus filmes de maior sucesso foi White Cargo (1942). Foi considerada para o papel principal em Casablanca (1943) e Gaslight (1944), mas perdeu ambos.
Seu último filme sob contrato com a MGM de Lois B. Meyer foi em 1945, após o qual ela deixou a MGM e montou sua própria produtora, tornando-se uma das primeiras executivas femininas de Hollywood.
Antes, em 1940, ela se juntou a seu amigo compositor, George Antheil, quando tocavam piano animadamente em uma festa. Cientista por vocação, teve uma ideia brilhante, que pode ter mudado a humanidade para sempre: enquanto tocavam, Hedy teve a inspiração para a tecnologia do sistema de salto de frequência: uma vez que quando tocava Antheil era uma espécie de “transmissor” dos primeiros acordes, enquanto ela seria a “receptora”, que o acompanhava em seguida.
A sacada: manter a sincronia mesmo com ambos tocando teclas diferentes. Transposta para a tecnologia de torpedos submarinos de guerra, uma vez que esse tipo de armamento era controlado por sinais abertos de rádio, seria impossível aos alemães interceptar ataques aliados. A marinha alemã provocava congestionamento na frequência usada na comunicação dos submarinos, causando perda de conexão. Com o sistema pensado por Hedy, o sinal “pula” de um canal para o outro, o que o torna imune a essa estratégia de defesa. Fosse implementada, tal tecnologia seria fatal aos alemães.
O sistema que ganhou o nome de “salto em frequência” foi até patenteado (em 1942), mas não foi usado durante a Segunda Guerra. Hedy Lamarr era uma jovem mulher, famosa por outros quesitos, e sua ideia revolucionária não foi suficiente para convencer o alto comando dos EUA. Alegaram também que a tecnologia para implementar o sistema era avançada demais para a época. Anos depois, a patente expirou e Hedy não ganhou nenhum centavo pela sua “invenção”.
Resumindo: Hedy Lamarr concebeu em um piano o sistema “militar” que acabou sendo usado postumamente de forma civil e permitiu a criação de tecnologias de comunicação como GPS, Bluetooth e Wi-Fi.
A misoginia da época vendia Hedy Lamarr apenas e tão somente como “um rosto bonito”. Mais tarde, ela proferiu: “meu rosto tem sido meu infortúnio (…) isso me trouxe tragédia e mágoa por cinco décadas. Meu rosto é uma máscara que não posso remover: devo viver sempre com ela”.
Quando Cecil B. DeMille a escalou como a derradeira femme fatale, a heroína bíblica Dalila, em seu filme Sansão e Dalila em 1949, Hedy não era mais a estrela de Hollywood que havia sido. Entretanto, o filme seria o maior sucesso de bilheteria de sua carreira.
Mas ela já não demonstrava tanto interesse. A carreira de Hedy Lamarr entrou em declínio e sua última aparição no cinema foi em 1958. Em 1966, ela já era presença regular nos noticiários, devido a mais um divórcio (era o seu sexto e último marido) e uma prisão por furto. Ela foi inocentada, mas o estrago estava feito.
Ecstasy and Me foi publicado no mesmo ano, com detalhes insanos sobre sua vida sexual. Ela afirmou que o ghostwriter fabricou a maior parte do conteúdo do livro. Processou — sem ganhar nada — os editores. Nos anos 1970, ingressou uma ação multimilionária contra a Warner Bros. por usar seu nome como piada no filme de Mel Brooks Blazing Saddles (1974). Fez um acordo fora do tribunal e encerrou o caso.
Como Hollywood não poupa ninguém, Hedy Lamarr também havia desenvolvido um vício em drogas. Reza a lenda que seu “fornecedor” era o famigerado Dr. Feelgood, também conhecido como Max Jacobsen, que deu a muitas celebridades “injeções milagrosas” regulares, compostas principalmente de anfetaminas e hormônios animais.
Na década de 1980, se estabeleceu na Flórida e se afastou dos olhos do público. Em 1991, ela foi novamente presa por furto, supostamente tentando levar cerca de 20 dólares em produtos numa farmácia. Ficou por isso mesmo.
Continuou em reclusão, afastando-se até de sua família — filhos e netos. Em janeiro de 2000, Hedy Lamarr faleceu de ataque do coração, aos 85 anos.
Se você está lendo isso em um celular, pode estar certo que boa parte é devido à atriz que protagonizou também o primeiro orgasmo no cinema.
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Ouça. Leia. Assista:
Livros sobre Hedy Lamarr na Estante Virtual
Hedy Lamarr: Inventora e Estrela – Meteoro Brasil
Ecstasy – 1933
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Imagens: reprodução