Femininos, Os Corpos Sem Paz


Foto retirada dos autos do processo. Ângela Diniz no centro

Segundo o Mapa da Segurança Pública de 2025, quatro mulheres foram vítimas de feminicídio por dia no Brasil no ano de 2024. Os estupros aumentaram em 25,80% nos últimos cinco anos. Pelo 16º sexto ano, somos campeões mundiais como o país que mais mata pessoas trans e travestis. A maioria das vítimas são mulheres trans, jovens, negras e nordestinas, com crimes marcados por extrema violência, segundo os dados apresentados pelo dossiê da Associação Nacional dos Travestis e Transsexuais.

Como se pode ver, quem desfila com um corpo feminino por aí, carrega um alvo. Sempre digo que o corpo feminino não tem paz no berçário, num leito de hospital, no asilo e nem no necrotério. Nem as estátuas de bronze com formas femininas escapam de ser tocadas de forma imprópria.

Sou estudiosa da violência de gênero e existe uma narrativa que sempre absorveu a minha atenção: a da relação entre Doca Street e Ângela Diniz. Um caso emblemático e que não pode ficar de fora do repertório de quem estuda violência de gênero no Brasil.

Para quem é mais jovem, de tudo o que eu li e estudei sobre esse caso, segue um breve resumo: Ângela foi assassinada com 3 tiros no meio do rosto e um na nuca por seu então namorado, Doca. Ambos eram pessoas da alta sociedade, belos, ricos e famosos. Bebiam muito e viviam uma tórrida e doentia relação permeada por abusos e violência. Quando Ângela resolveu dar um fim no relacionamento, Doca pegou uma arma e sentenciou “se não for minha, não será de mais ninguém”.

O primeiro julgamento de Doca foi praticamente um vilipêndio do cadáver de Ângela, parecia que era ela quem estava no banco dos réus. Uma predadora má que levou o pobre homem, cego de paixão, à loucura, pediu para morrer e ele foi obrigado a matá-la em defesa de sua honra. E foi aí que liberou-se para que mulheres fossem assassinadas sem o menor pudor, com a única finalidade de curar qualquer desconforto masculino.

Mas, voltando à Ângela, esse caso povoa minha cabeça há anos. Ele é o suprassumo da misoginia. Ela, sem dúvida, era uma mulher incômoda. Era o combo que o machismo não consegue suportar ou superar: inteligente, linda, independente e sexualmente livre. Era uma pantera (esse era seu apelido) que os homens achavam linda circulando, mas que no fundo o fetiche era domar, engaiolar e encoleirar.

Com Doca não foi diferente. Depois de quatro anos tentando transformá-la no padrão que a sociedade exigia de uma dama, diante do seu completo fracasso, viu que o único jeito era matar. E matou.

No primeiro julgamento, a pena atribuída a ele foi de dezoito meses. Houve uma reação dos movimentos feministas, que tomaram as ruas com os dizeres Quem Ama não Mata, e mediante a repercussão, o Ministério Público obteve a anulação da primeira sentença e, em novo julgamento, ele foi condenado a quinze anos de prisão por homicídio qualificado.

A vida íntima dela em ambos os julgamentos foi eviscerada, exposta, literalmente virada do avesso. A melhor defesa do assassino foi tentar convencer o júri de que se uma mulher usa seu corpo como bem entende, se veste (ou não veste) do jeito que quer, bebe, flerta, dança e se permite, ELA ESTÁ PEDINDO PARA MORRER. O pobre homem enlouquecido pela paixão, aprisionado pelo desejo, cego pelo ciúme apenas foi usado pelo ardil dela para que se cumprisse seu desejo e busca por uma morte trágica.

Muitos homens mataram Ângela, pelo ódio de não poder desfrutar daquilo que ela ofereceu, descaradamente a tantos. Muitas mulheres mataram Ângela, por apontar como se atrevia a ser tão desprovida de recato e pudor.

Uma moça de alta sociedade que se casou aos dezesseis anos com um homem vinte anos mais velho e separou-se dez anos depois. Que fez um acordo financeiro e aceitou a condição de deixar a guarda dos três filhos para o pai. Pensando bem, será que ela teve muita escolha? Se hoje em dia, algumas mulheres diante do poder financeiro de alguns homens não têm, imagine há quase cinquenta anos atrás? No entanto, na versão oficial, era só uma desnaturada mesmo.

Um furacão que atormentava com sua lascívia as belas, recatadas e do lar. Era aquela mulher que chega já constrangendo outras mulheres com a sua presença, que as obriga a beliscar seus homens e chutá-los por debaixo da mesa.

Mas quem poderia culpá-los? Coitados, encantados por aquela mulher quase mitológica, cujos nomes aviltantes minha educação me impede proferir (por favor, aqui há um monte de ironia). Recomendo que você assista o filme Ângela com Isis Valverde e Gabriel Braga Nunes nos papéis de Ângela e Doca. O filme é um soco. Tão humano que parece ter cheiros. Eu que já li sobre o crime e ouvi o excelente podcast Praia dos Ossos, me afundei naquela história, revisitada tantas vezes.

Trago o caso de Ângela, porque ele mudou o direito penal através do despertar de movimentos de mulheres que se organizaram para lutar contra a impunidade de Doca. É importante deixar claro que Ângela Diniz estava muito longe do feminismo enquanto movimento, ao contrário, ela expressava verdadeira aversão pelo movimento feminista. Há um áudio atribuído a ela em que ela verbaliza algo como “feministas são mulheres feias, sozinhas e mal-amadas.” Era mais uma das mulheres que, segundo ela mesma, não precisavam do feminismo.

Mesmo assim o feminismo foi às ruas para exigir um julgamento cuja pena refletisse o quanto aquele crime era vil, cruel e abominável era tão essencial naquele momento social. O tiro no rosto tem um simbolismo muito evidente nesse caso: destruir a imagem, impedir o velório, “acabar com a raça”. Dizimar a identidade daquela mulher, para que a última pessoa a ver o rosto dela fosse ele, para depois então, desfigurá-lo.

Não era só por Ângela Diniz, mas também por ela. Quantas foram vítimas antes de Ângela e não tiveram um mínimo de justiça? Quantas, até Maria da Penha, que precisou ir até a Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciar a omissão do Estado Brasileiro, foram completamente ignoradas e não sobreviveram para contar a história? Quantas ainda não o são? E aquelas que sofrem tantas violências que desistem de viver, se entregam aos vícios ou acabam com as próprias vidas?  Fazer com que uma mulher desista da vida também é feminicídio.

Na realidade, não me surpreenderia se mulheres que já nasceram destinatárias de alguns direitos pelos quais nossas ancestrais deram suas vidas, que não compreendem a luta para que mulheres sejam equiparadas aos homens em direitos, condenem Ângela e perdoem Doca. Na época do crime muitas foram em defesa dele. Chegavam na prisão milhares de cartas de mulheres oferecendo a ele apoio, um ombro amigo, um romance atrás das grades.

Muitas mulheres não enxergarão uma gota do sangue de Ângela nas mãos de Doca. A culpa era sim, dela. Sem dúvida. Ela provocou. Ela pediu. “Ela fez ele fazer”. Ela não se comportou como deveria. Mas muitas se comportam, se submetem, obedecem e ainda assim, morrem. Ano passado, quatro por dia no nosso país. Em 2024, 168 no Paraná, segundo o Lesfem.

Homens? Certamente compreenderão as atitudes de Doca, afinal, uma mulher é capaz de fazer de tudo para tirar um pobre homem do sério, não é? Ele “perdeu a cabeça”, “não aceitou o fim do relacionamento”, “enlouqueceu porque foi rejeitado”.

E assim nomes de mulheres de todas as idades tomam os noticiários. As Ângelas, as Tatianas, as Raíssas, as Isis, Géssicas, Vivianes, Bernardetes, continuam morrendo violentamente e quando se fala em violência de gênero, chegamos a ser tratadas com desdém e sob a acusação de vitimismo. Mas é isso mesmo, somos vítimas de uma sociedade para a qual a vida de uma mulher é vida de segunda categoria.

Por fim, o cadáver desfigurado de Ângela não foi, na época e nem atualmente, nada perto da popularidade de Doca, que até hoje, quase cinquenta anos depois, dá nome a um sanduíche famoso no Rio de Janeiro e deu nome a um coquetel de bebidas vendido num bar, decorado com quatro balas dentro do copo.

Às vezes a mulher morre porque é livre. Às vezes porque é linda, porque é jovem, porque rejeita, porque não rejeita, porque está grávida, porque não consegue engravidar. Esses dias uma adolescente foi envenenada porque era muito feliz. Em todas as situações, morre por ser mulher. Isso é feminicídio. A imagem que ilustra esse texto, conta-se, é do último dia de vida de Ângela, que morreu em 1976, o ano em que eu nasci. É pelo direito que Ângela não teve de envelhecer, que eu vou envelhecer lutando.