Escritor e compositor carioca retrata seu bairro com a assertividade de um repórter atento. Resultado veio em discos, livros, performances ao vivo e videoclipes registrados sob textos frenéticos
Encravado nos limites de Botafogo, Leme, Ipanema e o oceano Atlântico, onde calam as areias da praia famosa, o bairro de Copacabana guarda muito mais em si do que as fotografias, canções e registros cinematográficos cantados a meio mundo desde a década de 1920, época na qual foi inaugurado seu famoso hotel, pelas mãos da rica e ilustrada família Guinle, que neste ano da graça de 2023 completa seu centenário.
Pois é a partir dos fundos do Copacabana Palace — na avenida Nossa Senhora de Copacabana — para “dentro” que seu poeta mais evidente cantou a vida profunda do bairro mais famoso do Rio de Janeiro. Era a década de 1980 do século 20.
Fausto Borel Cardoso nasceu no Rio em 1957. Cresceu na efervescência dos 1960 e 70’s e em 1983 era estudante de Jornalismo na PUC quando conheceu Laufer. Um tempo no qual a cena carioca da zona sul tentava dar passos para além do rock progressivo que impregnara a década anterior.
O estudante de comunicação vai pro centro do quarto e liga o telão
Tira o velho rap d’Anne Stark
Coloca o novo rap d’Anne Stark
Pois no seu telão só rolam ininterruptos raps d’Anne Stark
Ininterruptos raps d”Anne Stark.
Quando a imagem da loura aparece ele sente-se um Hamlet contemporâneo
Um Hamlet contemporâneo
Não segura a caveirinha não
A dupla encenava esquetes teatrais pelos cafés cariocas, sob o enfático sobrevoo da poesia marginal de Charles, Tavinho Paes, Chacal e companhia; do Circo Voador, do grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone e a “new wave”, que emergia calando muito bem à atmosfera carioca, com suas cores e descompromisso relax. Tempo de abertura e novos ares.
Não muito diferente de outros lugares, montar uma banda era algo quase impossível de não se fazer à época. Fausto recebeu a sugestão do cineasta Cacá Diegues, que apreciava o ritmo alucinante dos textos proferidos pelo poeta nos muquifos e espaços universitários do Rio.
Avançamos para 1986 e o parceiro Carlos Laufer (guitarra), Pedro Leão (guitarraos irmãos Marcelo e Marcos Lobato (bateria e baixo) se conectam. Fausto adotara já o pseudônimo Fawcett, dado que era fã da loiraça de As Panteras (Charlie’s Angels, 1976-1981). Estava formada a banda Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros.
O primeiro álbum sai autointitulado pela WEA em 1987. Sob produção do gênio Liminha, contém oito faixas com um fio que as faz interligadas (o “fio” é Copacabana, dá pra dizer) sob batidas funkeadas fortíssimas e guitarras rítmicas e distorcidas. Hoje o disco é considerado um propulsor da cena rap/hip hop da zona norte carioca, bem como do funk que viria com força na década seguinte. Teve ainda participação da parceira Fernanda Abreu e arte da capa de Jorge Barrão.
A temática faz ver um Rio de Janeiro de cenário futurístico cyberpunk. Algo que – por se tratar de RJ – torna tudo extremamente peculiar. Juliette e Katia Flávia – Godiva do Irajá estouram nas rádios. Kátia Flávia ganha clipe no Fantástico da Rede Globo.
Enquanto Sargentelli tinha um séquito de mulatas, Fawcett trazia as loiras como simbologia da mulher fatal, extraída dos romances noir que colavam perfeitamente em sua elucubração de um universo oculto dentro do panorama feroz da noite em Copa. Não há um motivo específico para o verdadeiro blonde team que se instalou em todo trabalho musical do poeta a partir do sucesso de Kátia Flávia.
“Elas não estavam vinculadas à música, claro que as personalidades têm a ver com a figura dela, mas elas foram convocadas por mim, que em espetáculos e performances sempre procurei uma musa para trabalhar”, declarou ao site Notícias da TV, em 2022.
Em 1989, a banda (e as loiras) se repete para a “ópera porno-futurista” O Império dos Sentidos (WEA), álbum produzido por Herbert Vianna. Em 1993, reúne um power group para a gravação e show de Básico Instinto (selo Chaos), com Dado Villa-Lobos e Laufer nas guitarras, Dé Palmeira no baixo e João Barone na bateria. As “loiras da vez” estão agora no palco: Marinara Costa, Katia Bronstein e Regininha Poltergeist. O show roda o país e estabelece de vez o nome de Fausto Fawcett como o principal cronista carioca daquele fim de século.
No meio de tudo, em 1990, Fawcett lançara Santa Clara Poltergeist (Editora Eco) um romance experimental com a prosa ritmada de tal maneira que — impossível ser diferente — lembra exatamente a poesia falada de suas canções. Uma metralhadora sci-fi que esparrama Copacabana pelas páginas. Segundo o crítico Ivan Carlos Regina em seu Manifesto Antropofágico da Ficção Científica: “Fausto pegou elementos estéticos do cyberpunk, alimentou-se deles, misturou nosso suco gástrico e regurgitou um punk totalmente brasileiro: o tupinipunk”.
Aí é preciso entrar na seara do “conhecer Copacabana” para entender a singularidade da estética proposta, em contraponto com o noir , o cyberpunk e a sci-fi tradicional. O elemento sexual, brazuka até a medula, o caos, os travestis e a noite do bairro que “pinga água de ar-condicionado” num calor de 40 graus refrescando a contragosto seus transeuntes, ao passo que em julho/agosto tem um vento que sopra do mar que faz gelar a alma mais cética. Daí a gente entende a jaqueta de couro do cantor em pleno Rio.
“E a multidão encharcada pergunta: de onde vem essa loirinha?”.
Dê uma volta por Copa. Com sorte ou não, quase sempre você vai invariavelmente trombar com o cara. Quando não está nos botequins das esquinas que ainda resistem pelo bairro, ele dá um pulo à zona norte curtir seu Fluminense no Maracanã.
Mais fácil é conferir sua obra. Está tudo ali, debaixo dos ares-condicionados que molham as calçadas, e as pessoas. E evaporam. Como Kátia Flávia.
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Ouça. Leia. Assista:
Fausto Fawcett & Os Robôs Efêmeros (1987)
Santa Clara Poltergeist – romance (1990)
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Imagens: reprodução