Um dia a escravidão ainda vai voltar, como vicio, como língua, como estranhamento, como resignação. A ausência da utopia, nossa crise de identidade, permitirá que pretos, nordestinos, bolivianos, haitianos, judeus e filipinos recebam o açoite outra vez, como se estivéssemos na Mauritânia, em nome da liberdade, mulheres serão vendidas nos anúncios de néon da beira da estrada. O maldito dever que acreditamos cumprir como seres que pensam pensar nas coisas permitirá a volta da escravidão em nossos olhos, em nosso tempo.
Confesso que o Egito nunca saiu de mim, todos os dias da vida grito por vida, grito pela amizade e pela igualdade, não um gesto solidário que hierarquiza as pessoas, e sim, um humaníssimo gemido de alguém que grita por mais vida, mais forma de existir para além do mérito daqueles que buscam um olimpo do meio entre os seus, pálidas figuras seduzem, tentam seduzir e tentam ocupar, invadir e se perdoar, e nós, muitas vezes, reverenciamos as pálidas figuras em nome de uma afetividade que não sabemos, os pálidos tem instintos incontroláveis.
Um dia a escravidão vai voltar, não como forma, mas como função aritmética daquilo que excluímos, na crença dos iguais, do grupo, dos homens desconstruídos em seu tempo com mesmos atos porcos, brindando vinho, alimentando o anseio de rodar por aí de um jeito hedonista e individual.
Segundo o hipócrita, “o tempo ficou para trás, mas algo existe ainda”, porém, quando repetimos as agonias do passado, o tempo para, mas, o tempo é aquilo que possibilita superar os demônios, esses demônios que na burrice não podem aceitar o diverso, que pena, acreditam que foram ou serão. Demônios que são uma massa incolor em meio ao arco-íris das possibilidades, uma traição da indômita potência da alma em caixas que chamamos casa, pois todos precisamos de um lar, de um trabalho e revolucionar nossa vida com o amor.
Ainda existem aqueles, que no criolo, gaudério e gaúcho sul do Brasil, esqueceram as ranhuras da construção de sua terra em nome de uma Europa imaginária que expulsou seus avós de lá, o Sul é nordestino e preto, é Lupicínio, Lápis, Cruz e Souza, o Sul nunca foi branco, nunca existiu se não o vento sul que bate sempre para o norte, o vento norte traz a chuva e a chuva semeia os campos verdes que na geologia não existiriam senão o norte, senão o sol, senão a luz dos mortos voluntários nas revoluções sulistas. O Sul matou seus índios símbolos, charruas, minuanos, araucanos, caingangues e etc. O Sul vive da mítica dos mesmos acreditando ser primeiro mundo, modelo, por isso, sul apagado.
A escravidão grassa no dinheiro, nos tapetes das etiquetas do mercado, a semelhança entre judas e judeu criou o ódio e depois a guerra, os pretos cuja história se apagou nos porões de um navio cujos nomes, os ancestrais e a terra foram perdidos no fundo do mar, hoje pretos, mulheres, indígenas, judeus, filipinos surgem como o óbvio diante o pulso do tempo, é o que estava ali, diante dos olhos, na alma de todos nós.
Está em nossas mãos a possibilidade de não vir a escravidão mais vil em nosso tempo, em nosso lugar, basta saber o lugar, ninguém pode nos impedir de ser feliz, ninguém pode nos por porta a fora de nossos sonhos, ninguém pode saber o que nos sangra por dentro, então quando o instinto for mais forte que nós mesmos, basta lembrar que Waltel inventou a Bossa junto com João, que soube seu lugar, eu sei onde é o meu.
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Foto: Charruas levados prisioneiros para a França – Reprodução