Artista foi o brasileiro que reuniu as maiores credenciais acerca do ritmo, comportamento e atitude que mudaram o mundo
Quando ouvimos falar de um artista de rock norte-americano — aqueles do tipo “raiz”, de cidade pequena, o indivíduo que “esteve lá”, seja de qual lado do trilho de trem que normalmente separava o bairro branco do negro ele estivesse — sempre vamos nos deparar com um grupo vocal, normalmente ligado a uma igreja protestante, do qual o cara era integrante. Não fosse do interior, era morador de periferia de alguma grande cidade. Consegue gravar com seu grupo, destaca-se e segue por conta. Tem uma parceria atávica e tumultuada. Monta uma grande banda, ganha fama e dinheiro. Vai à tevê. Mulheres, drogas, reviravolta na carreira, psicodelia, decadência, esquecimento. Guinada para as raízes funk, retorno triunfal, novo esquecimento, novo retorno, reconhecimento tardio, um fim sublime e digno, quando não morre antes, claro. Nem sempre. Nem sempre futebol clube. Clube de regatas nem sempre da gama. É preciso remar. Isso é rock’n roll.
O descrito acima pode ser a biografia da carreira de quase todo mundo que você conhece no universo da música pop em seus primórdios, na segunda metade dos anos 1950. Chuck Berry, Elvis, Bill Halley, Sam Cooke, Jerry Lee Lewis. Os caras.
No Brasil, só um “cara” reúne tais predicados. Reúne todos. Seu nome é Erasmo Esteves. Sua periferia de grande cidade é o bairro da Tijuca, na zona norte do Rio de Janeiro. Erasmo tomou contato com o rock em 1955, na boca da botija, na “hora da coisa” acontecendo, a 10 mil quilômetros de Memphis, no Tennessee, EUA. A nave que o transportou para lá foi Elvis Presley. Antes, tomou contato com a “coisa” via Bill Halley e o Rock Around the Clock. Era 1955, algo assim. A vida desse tijucano nunca mais foi a mesma.
E teve o grupo vocal, os Sputniks. Integravam o conjunto um certo Roberto Carlos(o parceiro atávico) e o “mestre” de violão de Erasmo: Tião, depois chamado Tim Maia — um cara tão maluco que não teve tempo pra esse negócio de rock’n roll, porque estava além e foi parar nos EUA. Erasmo ficou. Apareceu Carlos Imperial e a turma da Tijuca foi parar na televisão, uma vez que os Sputniks foram pro espaço. Roberto saiu. Erasmo foi em frente.
O esperto Carlos Imperial tinha planos para a rapaziada. E bolou um programa. Em São Paulo. Como diria o niteroiense Claudio vigo, um bom tijucano acaba mesmo em São Paulo. Uma tal Jovem Guarda. Aí veio a fama, as mulheres e o dinheiro. E a parceria atávica com Roberto começou a render. Erasmo Esteves por esta época já assinava Erasmo Carlos, de tão atávico era com o parceiro. Os “Carlos” eram um sucesso. E havia Wanderléia. Ele ganhou a alcunha de “Tremendão”. Tudo era iê-iê-iê. Os anos de chumbo já corriam, mas passavam ao largo. Por enquanto.
Volta ao Rio. O programa chegou ao fim. Roberto escapou mais uma vez. Erasmo continuava rock’n roll. E veio o primeiro “esquecimento”. O ato de fazer rock no Brasil sofreu ataques e algum desprezo. Inventaram uma tal de MPB, que dividiu os povos e algumas águas na Guanabara. Mas apareceram os tropicalistas, que reuniram tudo de novo. Erasmo voltou.
Adentrou triunfante os 1970’s. Olhou para a black music de seu próprio país, o funk, o samba-rock e a psicodelia daqueles anos de chumbo, que já não passavam tão ao largo, com a justa de olho em todos. Como passar despercebido com 1,90 de altura e tanto barulho? Até que deu. Erasmo conseguiu.
Roberto volta, mas as carreiras seguem separadas — sem trocadilhos aqui, por favor. Centenas de sucessos na voz do parceiro. Muito pouco na sua própria. Mas a amizade estava declarada para sempre.
A cabeça a mil, no entanto. Uísque e drogas. Barra pesada. Não dá pra segurar. Erasmo dá um tempo. Sempre gravando. Nem sempre tocando ao vivo. Aparecia pouco. O necessário. Monta então a superbanda, Cia Paulista de Rock, só com feras. O ciclo estava fechado. Isso é rock’n roll.
Ao contrário de muitos de seus pares e ídolos mais famosos da América do Norte e Inglaterra, Erasmo não morreu sentado à beira do caminho. Foi em frente. Altos e baixos, atravessou os 1980 e 90 como um cometa do ídolo Bill Halley.
Viu seu Vasco da Gama ganhar a América, a exemplo de seu parceiro, agora quase um amante latino. Parou de beber nos 2000. Tinha mais — e muito — o que fazer. Perdeu mulher e um filho no trajeto. Continuou.
Erasmo foi até os 81. Seu enorme coração parou de bater em novembro de 2022.
750 canções e mais de 40 discos depois, dá pra dizer: Erasmo foi o cara mais rock’n roll do Brasil de Nosso Senhor. Missão cumprida.
Ele era o Tremendão.
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Ouça. Leia. Assista:
Carlos, Erasmo – 1971 – álbum completo
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