Freud, como todo bom vienense com tempo livre e uma poltrona confortável, tinha o hábito de desconfiar de tudo. Desconfiou da moral, desconfiava da mãe, desconfiava até do sono. E um dia, se tivesse tido mais alguns anos de charuto, talvez tivesse desconfiado de Deus. Não da existência, mas do comportamento. O diagnóstico seria inédito: “Deus é hiperativo.”
Não é difícil chegar a essa conclusão se você olhar para a criação como um prontuário clínico. Seis dias para criar o universo? Isso não é onipotência, é pressa. O tempo médio para decorar uma sala de apartamento é maior. Deus, em seis dias, inventa átomos, galáxias, baleias, o colibri e a esquizofrenia. É o típico caso de TDAH cósmico: não consegue terminar um planeta sem já pensar no próximo. E no sétimo dia, quando todos esperavam que descansasse, Ele inventa o descanso. Quem cria o repouso porque não sabe repousar é claramente um paciente em negação.
A Bíblia, lida à luz da psicanálise, parece uma coleção de atos falhos. A cada capítulo, um sintoma. Cria Adão e Eva, mas se entedia com dois figurantes e resolve colocar uma cobra e um pomar proibido só para agitar a trama. Manda dilúvio porque perdeu a paciência com os humanos, mas salva um casal de cada espécie como quem guarda figurinhas repetidas para o próximo álbum. É o id divino funcionando sem superego: pura impulsividade.
Freud veria nisso um quadro clássico. A onipotência divina não seria sinal de poder, mas de ansiedade. Deus não tolera o vazio. Preenche com luz, preenche com palavras, preenche com pecados. E, quando o vazio aparece de novo, Ele inventa mais uma lei, um profeta, um trovão no deserto. É o paciente que não aguenta o silêncio do consultório e fala até sobre a cor da cortina.
O curioso é que os teólogos sempre tentaram justificar esse comportamento com palavras pomposas: “desígnios insondáveis”, “planos misteriosos”, “providência divina”. Freud não teria tanta paciência. Diria que Deus, lá no fundo, sofre daquilo que todos sofremos: angústia de castração. Só que, no caso d’Ele, a castração não é fálica, é metafísica. A eternidade é longa demais para alguém que não consegue ficar parado cinco minutos.
A história do mundo, então, pode ser lida como uma terapia mal resolvida entre Deus e a humanidade. Nós deitamos no divã da religião para lidar com Seus rompantes criativos. Quando Ele se excede — mandando pragas ao Egito ou confundindo idiomas em Babel —, inventamos liturgias para organizá-lo, como quem organiza os brinquedos do filho hiperativo numa caixa. Rezas, salmos, mandamentos: tudo tentativa de canalizar a energia de um paciente que não para de mexer as mãos.
E os profetas? Assistentes terapêuticos. Moisés, Isaías, Jeremias: estagiários do inconsciente divino. Anotavam delírios, interpretavam sonhos, tentavam dar sentido ao que, na verdade, era só hiperatividade transcendental. “O Senhor me disse no deserto.” Claro: insônia. Deus não dormia e acordava os outros com ideias mirabolantes, em uma época em que não existia energético, não quero afirmar nada.
Freud, se tivesse apresentado essa tese em Viena, teria sido perseguido mais ainda, mas talvez tivesse encontrado discípulos. Imagino uma nova vertente da psicanálise: a Teo-análise. Consultórios cheios de fiéis relatando seus sonhos com anjos, enquanto o analista dizia: “Não é com você, é Ele que está projetando.” Igrejas virariam clínicas. O Pai-Nosso seria recitado deitado: “Doutor, nosso Pai que estais nos céus não consegue terminar um mandamento sem começar outro.”
No fundo, tudo isso explicaria o problema da liberdade humana. Deus criou o livre-arbítrio não como gesto de generosidade, mas porque já estava entediado de controlar tudo. Um pai hiperativo precisa distrair-se com novos projetos e deixa os filhos soltos, esperando que não coloquem fogo na casa. Deu no que deu.
A psicanálise nos ensinou a interpretar lapsos. O universo, talvez, seja apenas o maior ato falho da história. Um lapso divino. Freud, no fundo, teria descoberto que Deus não é bom nem mau, justo nem injusto: é apenas ansioso. A eternidade é tempo demais para alguém que precisa estar sempre inventando moda.
E o diagnóstico final, anotado em alemão num prontuário imaginário, seria simples: “Der liebe Gott hat Aufmerksamkeitsdefizit mit Hyperaktivität.” Deus tem déficit de atenção com hiperatividade. O resto, como dizia Freud, é interpretação.