Dener. O luxo está na atitude


Considerado o primeiro grande estilista da alta-costura nacional, sua personalidade transbordou as passarelas, colocando o Brasil no mapa do mundo da moda, junto a toda efervescência cultural do período

Dona Maria Thereza Goulart rondava impaciente pela sala de estar do luxuoso palácio presidencial, em 1963. De Brasília, telefonara já mais de uma vez a São Paulo, à procura de seu estilista, ao qual tentava localizar. Havia um evento essencial na noite seguinte e ainda não sabia qual vestido seria sua indumentária. Entre uísques com gelo e guaraná, Norma Bengel na vitrola entoava canções da bossa nova em inglês. A atmosfera era complementada pela preocupação com a ausência frequente do marido — o presidente do país — que sofria ataques de todos os lados em seu turbulento mandato. Maria Thereza mal sabia como se locomover publicamente sem os acessórios criados pelo costureiro.

Em um ateliê na avenida Paulista uma equipe de auxiliares se encontra em desespero, pois o chefe está sumido desde a noite passada, quando iniciou uma de suas noitadas intermináveis regadas a uísque. O relógio já contava três da tarde quando o “dono da coisa toda” aparece, trajando um blazer de veludo e uma calça de tergal em sapatos italianos, para alívio de seus auxiliares. Imediatamente é colocado na linha com a agora aliviada primeira-dama, esposa de João Goulart. Sua amiga pessoal, antes de tudo.

A cena descrita era uma frequente na vida de Dener Pamplona de Abreu. Aos 26 anos, era o maior estilista brasileiro de seu tempo. Completava algo como 15 anos de uma carreira meteórica que começou cedo, desenhando a fina flor da alta costura nacional. Há quem diga que Dener foi na verdade o primeiro etilista do país. Antes, tudo era apenas reprodução. Foi o primeiro artista da moda tupiniquim.

Dener nasceu em Soure, que soa parecido a um povoado no meio da França, mas não, é uma cidade na Ilha de Marajó, no Pará, em 1937. Foi com a família para o Rio de Janeiro ainda criança. Aos treze anos já esboçava seus primeiros desenhos e foi trabalhar na Casa Canadá, uma importante boutique carioca. Consagrou-se logo de cara, com a sorte dos gênios, ao desenhar com exclusividade o vestido de debutante de ninguém menos que Danuza Leão. A sorte estava lançada.

Em 1954 mudou-se para São Paulo, por contrato de trabalho assinado com a boutique Scarlett. Amigo de Aracy de Almeida, a sambista carioca o ajudou a montar seu primeiro ateliê próprio, o Dener Alta-Costura, na praça da República, em 1957. No ano seguinte seu estúdio foi transferido para a avenida Paulista. E Dener passou a fazer parte das mais diversas vanguardas ao qual o Brasil daquele tempo era protagonista. Da bossa nova ao teatro de arena, da poesia concreta ao cinema novo, do futebol e arquitetura à moda, que agora tinha uma estrela definitiva.

Em meio ao “ti ti ti’ de futilidades do meio em que atuava, Dener tinha uma particularidade bastante especial: ao contrário da grossa maioria de seus pares, ele gostava de mulher. Casou-se em 1965, com Maria Stella Splendore, considerada tal e qual a primeira top model brasileira. Portador de trejeitos afetados como a maioria dos cabeleireiros e costureiros da época, começou ali uma série de lendas e folclore a seu respeito. Corria no meio masculino, desde oficinas mecânicas e vestiários até os botecos da boca do lixo, que Dener “cortava dos dois lados”, o que significava que era bissexual. Teve dois filhos com Maria Stella, mas quase ninguém acreditava de fato que ele fosse “completamente hetero”. A maior maldade que corria no entanto era a de que o charmoso estilista era na verdade “cabra-macho”, e que “disfarçava” os trejeitos para ganhar intimidade e “papar as mocinhas”. Essa lenda acabou sendo levada ao cinema, com Erasmo Carlos interpretando um sujeito que usava de tal expediente com os mesmos propósitos (Os Machões, Reginaldo Faria, 1972). Ou seja: um mar de bobagens machistas típicas do atraso latino.

Falando em “ti ti ti”, a telenovela homônima (Ti Ti Ti, Wolf Maya, 1985) foi inspirada na notória rivalidade entre Dener e Clodovil. Tema das revistas de fofoca dos anos 1970, a “treta” entre ambos dizia-se que se dava devido à inveja de um pelo outro, quanto a aparição na mídia (televisão, no caso). Dener se queixava que Clodovil não fazia mais moda, sendo apenas alegoria de programas de auditório, e Clodovil devolvia no reverso da moeda, dizendo tudo isso ser inveja do colega. A consultora de moda Costanza Pascolato pôs fim a tais lendas. Para ela, a tal rivalidade da dupla não passava de jogada de marketing. “Dener e o Clô eram amicíssimos. Eles sabiam que forjando essa rivalidade, ganhariam espaço na mídia. O que de fato conseguiram”, declarou recentemente.

Aos fatos e ao que interessa: o trabalho de Dener foi revolucionário. Vestiu com classe e consciência, mas desenhou com ousadia, e desenvolveu sem sombra de dúvida algo que podemos chamar de “moda brasileira”. Ele próprio costumava dizer que “agora as grandes senhoras do país não precisam mais se vestir na Europa”.

No ensaio O Luxo na Obra de Dener, a pesquisadora e jornalista Felicia Assmar Maia discorre: “Ele era elegante, criativo, fotogênico e tino comercial não lhe faltava. Vivia uma fantasia natural que impressionava. Construiu seu nome através do marketing do luxo, que tanto amava e personificou, num misto de sonho e realidade. Seu legado continua inspirando novos estilistas, encantando as mulheres e imprimindo glamour à moda brasileira. Dener vestia as mulheres da alta sociedade, mas comunicava-se com o povo, mostrando um estilo próprio de viver, não de possuir luxo, mas de ser o luxo em pessoa. E ensinou que o que é importante não é o que se veste, mas como e por que se veste. Ser elegante, ser luxo, não é uma questão de roupa, mas de atitude”.

Seu sucesso deveu-se também à esperteza de que é preciso “ter para quem vender” suas grandes obras. Ou de nada adianta ser um gênio com tudo guardado na gaveta. Dener pertenceu de fato a uma geração brilhante de artistas em todas as áreas, e é fruto de um Brasil que se tornou vanguarda no mundo ao descobrir-se a si próprio, o que não exclui a moda. Em sua esteira vieram nomes como Zuzu Angel e o “rival’ Clodovil Hernandez.

Dener separou-se de Maria Stella Splendore em 1969. Escreveu a autobiografia Dener – O Luxo (Laudes, 1972). Morreu em 1978, aos 41 anos, devido aos excessos do alcoolismo. A propósito, naquela tarde de 1963 Maria Thereza Goulart recebeu o vestido encantador e sóbrio com o qual acompanhou o marido no famoso comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

Ali, o Brasil começava a conhecer um período bastante turbulento, no qual as vanguardas seriam ainda mais necessárias. E oprimidas.

Ouça. Leia. Assista:

O Luxo na Obra de Dener, de Felicia Assmar Maia, pdf

Um Tributo a Dener (Dener Dalla Rosa, 2009)

Bordado da Fama – Uma Biografia de Dener, de Carlos Dória

 

 

Imagens: reprodução