De realismo mágico, o padre, balões, um italiano, o tri e a polenta


Uma crônica latino-americana absurda, com receita muito gostosa ao fim

Sempre que me apanho refletindo sobre o realismo fantástico (ou mágico) latino-americano, me recordo de uma conversa registrada no livro Cheiro de Goiaba (1982), que consiste em diálogos travados por Gabriel Garcia Márquez e seu amigo Plinio Apuleyo Mendoza.

Em um dos trechos, Gabo divaga sobre o gosto que a gente leitora europeia tomou pela então novíssima literatura, produzida em toda segunda metade do século 20 e publicada no velho mundo principalmente a partir do início dos 1960’s. Ele observa, mais ou menos assim, sem cola ou google por aqui: “o europeu se encanta com o fantástico que há em nossa criação, mas não conhece a realidade que gerou tal fantástico”.

Não há como negar. De súbito me apanho igualmente refletindo sobre as fantásticas histórias tantas com as quais já nos deparamos ao longo da vida. A maioria das quais já ouvimos falar, sem tê-las presenciado de fato. Algumas em nada diferentes do ambiente europeu, do tipo histórias de lobisomem, estas quase umas “campeãs de audiência”, fantasmas, vampiros; outras muito peculiares, de senhorinhas benzedeiras, pequenos milagres interioranos como a estátua da santa que exala lágrimas de sangue (deve haver uma meia dúzia dessas América afora); e padres que voam — deste você já ouviu falar.

Entramos aqui na seara do absurdo. É verdade, divagando que vou, já ia me esquecendo de avisar: o realismo fantástico brasileiro geralmente acaba se inserindo no latino-americano através do absurdo. Antes de mágico, é principalmente inacreditável, por fruto de uma realidade extrema. “Realidade extrema” parece um termo absurdo. Mas estamos falando de Brasil, e isso é absurdo por si.

Um amigo se encontrava perdido certa vez em San Francisco, Califórnia  — o melhor lugar da América Latina, rezam alguns em piada (mas real, olha aí) — na mitológica livraria City Lights Books, meca dos beatniks. O proprietário era o poeta e editor beat Lawrence Ferlinghetti, que ainda era vivo (morreu com mais de 100 anos em 2021). Meu amigo fuçava livros de Ken Kesey e outras coisas de seu interesse quando Ferlinghetti ao notar o sotaque ao ouvi-lo comunicar-se com um atendente, aproximou-se: “ei, você é brasileiro?”.

“Sim”, respondeu meu brother.

Repentino, o poeta subiu as escadas da livraria perdido entre prateleiras e voltou rapidinho: “você conhece isso aqui?” — tinha na mão uma edição em inglês de Capitães de Areia de Jorge Amado.

“Sim, Amado é um escritor muito popular no Brasil, tendo recebido muita glória em vida…etc…” — respondeu meu amigo.

Ao que Lawrence o interrompeu: “sim, sim, estou ligado. O que quero te perguntar é: isso tudo aqui escrito é verdade?”.

Meu amigo, meio sem jeito, respondeu a verdade sobre a verdade: “sim, o livro bate um retrato da realidade brasileira…” e tudo o mais.

É isso. Jorge Amado, sabemos, é um escritor realista. Acontece que a realidade brasileira é tão absurda que é suficiente para inserir tal literatura no realismo fantástico sem qualquer prejuízo de valor. Ferlinghetti suspirou uma mistura de alívio, perplexidade e admiração.

Cai o pano. Sobe em Paranaguá. Resignado, me recordo do “Padre do Balão”. O supracitado. Uma realidade absurda, um fato incrível. Algo que remete ao Odorico Paraguaçu de Dias Gomes, personagem de sua novela O Bem Amado, que na ânsia de inaugurar um cemitério da cidade onde era prefeito, entre idas e vindas e muita confusão, acaba inaugurando com seu próprio cadáver a maior obra de sua gestão.

Paranaguá em festa. Prefeito, vereadores, secretários, diversas autoridades locais, políticas, administrativas e eclesiásticas. Banda da Polícia Militar, a própria Polícia Militar e seu oficialato local, inclusive os bombeiros, para festa das moças em flor! Ainda televisão e rádio para o registro midiático. Tudo para acompanhar o padre que, amarrado a um monte de balões estilo bexiga a gás (não é brincadeira!), levantou voo, munido apenas de um rádio para se comunicar. E foi-se aos ares, sob aplausos de uma pequena multidão. Não é preciso dizer que morreu em algumas horas, desapareceu e seu corpo só foi encontrado há coisa de 80km, dias depois, comido pelos peixes em algum ponto do litoral paulista um tanto próximo dali.

É de coisas assim que estou falando! A tal “realidade que gerou o fantástico”. Garcia Márquez é luz.

Cai novamente o pano, que sobe em novo ato para um passado já meio distante. Em Nova Fátima, no norte do Paraná, pequena cidade a uns 70km de Londrina, corria a Copa do Mundo de 1970, disputada no México. A televisão transmitia direto da terra de Otávio Paz — outro expoente do realismo mágico — a final entre Brasil e Itália. É a cidade na qual meu avô paterno Adrião Andrade de Freitas constituiu família, sendo vereador por algum tempo e tudo o mais. Foi ele quem me contou essa história. O que a torna fantástica e mágica, apesar de absurda.

Ocorre que havia um italiano na cidade. Tido como muito chato. Surgido das entranhas do fascismo de Mussolini, era um nacionalista bravo bravíssimo feito Giuseppe Verdi em allegro. E é claro que bradava a Itália campeã, bradava com sotaque, bradava na língua mãe, com arrogância de encher o saco do povo todo da cidade.

Ao absurdo da história: o populacho local — alguns familiares meus inclusos, mamma mia! — resolve aprontar pra cima do carcamano. Todos nutriam a certeza de que a seleção Canarinho com Pelé, Tostão, Gerson, Rivelino e companhia não deixaria o tricampeonato escapar. Com toda razão. Aquilo era um escândalo de talento. Na calada da noite de véspera da partida, bolaram um plano. Iriam preparar um tacho enorme de polenta. Sim, polenta. Algo inacreditável, uma verdadeira banheira, quase uma piscina.

Dia do jogo. Assim que Carlos Alberto arremata aquela bola oriunda de uma das jogadas mais épicas da história e anota o quarto gol brasileiro, sepultando as esperanças da Azzurra, a turba ignara dirigiu-se em horda à casa do italiano, enquanto Carlos Alberto levantava a taça Jules Rimet, nosso Santo Graal, aos olhos do mundo.

Não tardou e ele volta carregado pelo povão nova-fatimense, tentando oferecer resistência, inútil. Carregado como presa. É atirado aos olhos de todos dentro do tacho gigante de polenta. Ao carcamano, a polenta! Risos, escárnio, rancores da Segunda Guerra, tudo ao mesmo tempo, àquele tempo. Um absurdo. E o carnaval não teve fim na noite de domingo que se adentrou em Nova Fátima, ao som de Pra Frente Brasil e uma imensidão de sambas, marchas, vanerões e canções caipiras. Por óbvio, alguma tarantela em desagravo.

Garcia Márquez e seu amigo Apuleyo Mendoza iriam corar ao ler isso. A ambos, envio minhas sinceras desculpas, onde quer que se encontrem. Cheiro de goiaba. No Candomblé e umbanda, o cheiro de fruta pode ser associado a entidades espirituais específicas, como orixás. Cada orixá tem suas próprias características e símbolos, e o cheiro de fruta pode ser um sinal da presença ou influência dessas entidades. Mas fantástico é o catzo. O Brasil é um absurdo.

Vamos à receita de frango com polenta, fantástica e mágica por si só, que minha avó Aurélia  — muito provavelmente umas das mulheres que auxiliou no preparo daquele tacho infame em 1970, coro agora eu em pensar — cozinhava com a maestria de quase tudo que fazia na vida. Vovó dá um livro só dela, essa mulher tão espetacular quanto a seleção de 70.

Ingredientes:

– um frango inteiro em pedaços, tirando os miúdos

–  uma cebola picada tamanho médio

– três tomates italianos sem pele picados ou 1 lata de tomate pelado

– 4 dentes de alho picado pequenos

– uma xícara (chá) de cebolinha picada

– duas xícara (chá) de fubá

– um litro de caldo de legumes

– meio litro de água fervente

– 100g de parmesão ralado

– sal a gosto

– pimenta a gosto

Preparo:

Frango

1 – Tempere o frango com o sal, a pimenta, a cebola e o alho, depois reserve por aproximadamente 20 minutos.

2 – Em uma panela grande, adicione o óleo e deixe esquentar, depois coloque o frango temperado, deixe por 3 minutos de cada lado, mexa as vezes para o frango não grudar na panela.

3 – Sele os dois lados do frango, depois adicione a água fervente na panela e esfregue o fundo para soltar. Deixe cozinhar por 20 minutos.

4 – Adicione o tomate pelado com água, refogue por 25 minutos ou até ficar macio.

5 – Depois, retire o frango da panela e reserve.

Polenta

1 – Ferva a água e adicione o caldo de legumes.

2 – Em uma panela, coloque um pouco de água, o fubá lentamente, depois mexa sem parar e complete com água até o creme de fubá ficar cozido.

3 – Coloque o queijo parmesão e misture até dissolver e ficar homogêneo.

Sirva adicionando a polenta no prato com o frango por cima, depois despeje o molho e corra para o abraço, feito Pelé.

Acompanha vinho tinto. Cerveja boa e geladíssima também é bem-vinda. Música caipira raiz na vitrola. Seja feliz. Como os jogadores de 1970, use sua intuição e talento.

E nunca, nunca despreze o futebol brasileiro. Tampouco o realismo fantástico de tudo que é lugar da América.

Ouça. Leia. Assista:

Cheiro de Goiaba – Garcia Márquez – Conversas com Plínio Apuleyo Mendoza

Imagens: reprodução