Parte da Santíssima Trindade da gastronomia brasileira, a dobradinha é pura fineza. Maldita e rejeitada como tudo que é popular de fato
Dobradinha
Brumadinho, Mariana
Mais quem leva
O troféu é a televisão
(Gyl Silva)
O bucho é maldito. Bucho é ofensa. Bucho é apelido de pessoa feia, fora de forma. Mas uma dobradinha não tem igual. É um prato de extrema sofisticação.
A dobradinha é parte daquilo que costumo chamar de “santíssima trindade” da culinária brasileira. Aquela que reputamos “hard rock”. Ao lado da feijoada e do mocotó, a dobradinha completa a trinca que poderia ser o Deep Purple, o Black Sabbath e o Led Zeppelin, fosse de fato rock’n roll o tema.
Devemos sua origem — reza o folclore — à expansão portuguesa. Não diretamente. Foi quando em 1415 o infante dom Henrique foi à cidade do Porto averiguar os preparativos para a navegação que tomaria a cidade de Ceuta, na costa africana, dominada pelos mouros. Ele pediu mantimentos à população, que matou bois e cabras, salgou suas carnes e entregou à armada marítima de dom João I — primeiro rei da Casa de Avis — que rumaria à desembocadura do Estreito de Gibraltar ter embate com os árabes, objetivando a conquista.
A armada ficou com a carne. Ao populacho sobraram as vísceras e miúdos. Assim, entre outros pratos, a população inventou um ensopado bastante peculiar, feito a partir do estômago do boi — o chamado bucho — cortado em tiras.
Trocando em miúdos (sem trocadilho): a dobradinha é do povo. Um triunfo popular. Redenção da turba ignara, ralé enfurecida em festa. Sem mais.
Em tempo: a conquista de Ceuta foi fundamental para o início da mitológica era das navegações e descobrimentos de Portugal. Assim, um dia eles chegaram àquilo que viria a ser o Brasil. E a dobrada (nome luso da iguaria) veio aportar também por aqui, onde ganhou seu simpático diminutivo. Nascia a dobradinha.
Acerca do amor e do ódio, deixemos pra lá. Afinal, até Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, já cantou a dobradinha. “Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,/ Serviram-me o amor como dobrada fria./ Disse delicadamente ao missionário da cozinha/Que a preferia quente,/Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria./Impacientaram-se comigo./Nunca se pode ter razão, nem num restaurante./Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,/E vim passear para toda a rua./ Quem sabe o que isto quer dizer?/Eu não sei, e foi comigo…”
Não acredite. É verdade.
Ingredientes:
– 2 quilos de bucho cortado em tiras
– 500g de linguiça defumada
– 500g de bacon
– 500g de costelinha defumada
– 1 quilo de feijão branco
– 1 xícara de óleo
– 1 colher de colorau
– 2 cebolas pequenas
– 2 cubos de caldo (bacon e louro)
– 2 colheres de alho e sal
– 5 folhas de louro
Preparo:
A mãe não gosta de dobradinha, mas a preparava para o pai. Certo. Patriarcado, essas coisas. Deixa pra lá. Fedia, sabe como é. As reclamações de todos. Dá trabalho pra limpar. Tudo que todo mundo já ouviu. Aqui, vamos partir de um princípio: não seja um selvagem. Melhor: não seja um idiota. Tenha um bom açougueiro, ou morra. De nojinho. E fique sem a dobradinha. Azar o seu.
O normal é comprar o bucho já limpo e cortado. Em quase toda feira, mercado ou açougue é possível encontrá-lo já assim. De toda forma, tome uma providência: deixe o bucho já picado marinando no suco de 3 limões dentro da geladeira, por uma noite antes do início do preparo. Coloque lá e vá dormir. Acorde com fé e inspiração e siga o procedimento.
Escorra o limão e, dentro de uma panela, cubra o bucho com água e ferva. Junte em uma panela de pressão o óleo, o colorau e o alho, meta fogo e deixe dourar. Retire o bucho da outra panela e acrescente à panela de pressão, misturando bem até que ela fique bem temperada. Acrescente água até cobrir a dobradinha, coloque a costelinha defumada, cortada, dentro, feche a panela e deixe cozinhando por 45 minutos, pós pressão anunciada. Atenção ao sal, pois a costelinha pode elevar os níveis de salgamento.
Coloque o feijão branco para cozinhar em uma panela de pressão (separada) com uma pitada de sal e as folhas de louro (a gosto) e deixe cozinhar por 40 minutos.
Enquanto a dobradinha e o feijão estão cozinhando, em uma panela maior (pode ser de barro) coloque o bacon cortado em cubinhos para fritar. Assim que o bacon fizer óleo acrescente a linguiça defumada e deixe fritar.
Após os 45 minutos de pressão, junte o feijão, a costelinha e o bucho com os ingredientes à terceira panela. Deixa ferver, e vá curtindo. Essa é a melhor parte. Olhe para sua dobradinha como a quem você ama. É sério. Finalize ao seu modo e estilo. Já está pronto. Você é quem decide. Seja artista!
Acrescente a salsinha e a cebolinha e sirva. Ovos cozidos (durinhos) e azeitonas são opcionais. Decore como quiser. Vinho branco ou tinto de baixa acidez são ideais. Cerveja de boa qualidade também. Samba na vitrola e bom apetite.
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Ouça. Leia. Assista:
Dobradinha Light – Jorge Aragão
A Formação da Culinária Brasileira – Carlos Alberto Dória
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Imagens: reprodução