Desde muito cedo, tenho uma brincadeira secreta e muito particular que vou compartilhar com você hoje: eu fico imaginando o que os objetos pensam e sentem e falam e fazem quando ninguém está olhando. Nossa, acho que nunca falei isso em voz alta. Tá bom, pode rir e me chamar de doida – afinal já diziam que de médicos e loucos todos temos um pouco, não é mesmo?!
Ao que me lembro, tudo começou ainda criança, com os meus brinquedos. Antes de dormir, a gente os guardava no armário de cima do nosso quarto no Manhattan (o edifício, não a cidade) e logo que fechava a porta, começava a imaginar o que estaria acontecendo lá dentro. Será que as Barbies ficaram em uma posição confortável? As bonecas grandes estariam reclamando que hoje não brincamos? Poderiam os ursinhos achar ruim os seus furos, rasgos e manchas ou eles gostavam daquilo e se apegavam como que vivendo em nostalgia? Será que a boneca que enterrei no parquinho quando era praticamente um bebê ainda estava chateada comigo? E o que efetivamente acontecia depois que todos nós (humanos) dormíamos?
Cansei de passar o que pareciam horas imaginando o que os brinquedos iriam fazer quando todos dormissem e eles pudessem finalmente abrir as portas do armário e ser livres. Quantas noites dormi embalada por esses pensamentos… Incontáveis! Imaginava festas, brincadeiras, conversas. Mas mais do que acontecimentos, imaginava o que estavam sentindo, o que pensavam, se gostavam da forma como eu os tratava e dos amigos que tinham. Tudo meio ao estilo ToyStory, mas ainda bem antes do filme ser lançado em 1995.
Com o tempo, esses pensamentos pararam de ser exclusivamente histórias para dormir e começaram a permear todo o meu dia. Enquanto brincava, já ia pensando: “nossa, será que ela vai reclamar de ter ficado jogada com a cara no chão desse jeito?! Eu juro que não tinha visto!” ou então “uau! Tenho certeza que eles vão conversar sobre como o nosso dia foi legal hoje!”. Coisa de gente doida, eu sei.
Mas o tempo foi passando e normalmente essas coisas ficam para trás, certo? Hm, neste caso, não. Depois de tantos anos com este hábito, seria difícil simplesmente parar. Então, confesso que até hoje penso em como as coisas reagem ao mundo, umas às outras, a mim, a nós. E quando eu digo coisas, não estou falando mais de brinquedos. Estou falando de plantas (ok, essas são seres vivos, devem mesmo sentir algo), mas também dos seus vasos. Estou falando do filtro de água e da canequinha de Curitiba que fica embaixo da torneira desde que ela começou a pingar – e eu ainda não arrumei. Penso em como o papel higiênico se sente quando é colocado de ponta cabeça no porta-rolo e no sentimento do sabonete cada vez que eu o derrubo no chão (e olha que é bastante, coitado). E ainda penso se a boneca que enterrei na areia do parquinho já me perdoou – sim, ao que me consta ela ainda existe e a última vez que a vi, estava numa caixa de brinquedos dos meus sobrinhos-afilhados, na casa da minha mãe!
A esta altura você já deve estar pensando em me mandar para tratamento ou até me internar, mas pode se tranquilizar, esses pensamentos nunca me levaram a extremos como confundir uma mulher com um chapéu (caso verídico, contado no livro O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu, de Oliver Sacks, 1985 – e um dos meus maiores medos da vida, de verdade). Esses pensamentos apenas aparecem, vêm e vão, e algumas vezes me fazem rir.
Mas você também deve estar pensando o que tudo isso tem a ver com criatividade, certo? E é aí onde quero chegar!
Todo esse meu desabafo, tudo isso que contei agora, não é criatividade. Isso é imaginação.
Imaginação é a nossa capacidade de ver o que não está ali, de criar imagens em nossa mente, de falar sobre coisas como sentimentos, o divino e empresas. É a nossa capacidade de falar de passado e de futuro, de ver objetos em nuvens e rostos de pessoas em manchas na parede.
Uma das teorias citadas no livro Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari (2012) conta que justamente essa nossa capacidade de falar sobre o que não está em nossa frente nesse exato momento é que nos levou a esse grande número de conquistas sem precedentes frente às outras espécies. Enquanto um macaco-verde apenas conseguia gritar aos seus companheiros “Cuidado! Um leão!” no exato momento em que o avistava à beira do rio, “um humano moderno pode dizer aos amigos que esta manhã, perto da curva do rio, ele viu um leão atrás de um rebanho de bisões. Pode então descrever a localização exata, incluindo os diferentes caminhos que levam à área em questão. Com essas informações, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir se devem se aproximar do rio, expulsar o leão e caçar bisões.” A outra teoria dá o mérito do nosso desenvolvimento à fofoca. Pois é, mas isso não vem ao caso agora.
Voltando à imaginação, o que é então que a diferencia da criatividade?
Como conversamos no último texto (se ainda não leu, indico dar uma olhada, pois vem spoiler por aí: https://www.radioculturadecuritiba.art.br/o-que-e-criatividade/), “criatividade é imaginação aplicada para solução de problemas; é combinar o que já existe de um jeito novo, gerando valor; prática, processo” – em um tweet.
Ou seja, para que aquele meu velho hábito de imaginar o que as coisas pensam e sentem pudesse ter sido considerado criatividade, não bastava eu ter dado asas à imaginação, deixado ela correr livremente como eu fiz a vida toda. Eu precisaria também ter dado usos a ela. Combinado essas imagens com outras ideias e usado essa combinação para resolver algum problema (qualquer coisa que demande uma solução). Por exemplo, se eu tivesse escrito e publicado Toy Story, isso seria criatividade! Ou melhor, quem o fez, sim, foi criativo!
Ver desenhos nas nuvens é imaginação, usar um cone de sorvete junto com uma nuvem para produzir uma foto que pode ser utilizada, por exemplo, para ilustrar um texto sobre imaginação, é criatividade.
Ter uma ideia de um produto ou serviço revolucionário, mas não fazer nada com ela, é imaginação. Colocar essa ideia no papel, fazer um protótipo, testar, criar um negócio a partir dela, é criatividade.
Revisitar memórias e sondar o futuro é imaginação. Mas combinar experiências vividas com tendências mapeadas para resolver um problema qualquer, grande ou pequeno, para muitos ou para poucos, isso é criatividade!
Mas, atenção! Lembre-se sempre que para poder dar usos à imaginação, é primeiro imprescindível dar asas a ela. Não queira pular etapas. Viva, experimente, sinta, imagine. Só não pare por aí. Permita-se criar também.