Movimento iniciou na Europa, rodou o mundo e marcou a passagem do século nas artes
No início do século 20, algo próximo da Primeira Guerra Mundial, a Europa entrava em uma espécie de transe que traduzia exatamente a passagem do século dezenove para o vinte. Um mundo novo dava as caras, já com lâmpada elétrica e motor a explosão. A física de Einstein iniciava os tratados da relatividade, ao passo que a filosofia de Marx começava a colocar na cachola de muita gente a ideia óbvia de que o proletariado é que deveria estar no comando da sociedade. Freud estabelecia novos horizontes sobre a razão (e a loucura) humana. E as artes também estavam saindo do ponto pacífico no qual se encontravam confortavelmente, burguesas que só.
E uma nova geração de artistas começava a atacar o próprio conceito de arte. Em Paris, depois se aventurar pelos óleos sobre telas do impressionismo e do cubismo, Marcel Duchamp rezava que abandonara a pintura, porque “ela foi feita para os olhos e não para a mente”.
Em 1913, Duchamp prendeu uma roda de bicicleta a um banco na cozinha, e a colocou para girar. Durante a guerra, já em 1916, o escritor alemão Hugo Ball se refugiou na Suíça, neutra por vocação, pare se posicionar. E refletiu sobre tudo que a arte de seu tempo poderia oferecer. Concluiu que a forma humana desaparecia da pintura, aos poucos, e que todos os objetos aparecem apenas em fragmentos, e que era necessário avançar para o campo das letras, no qual a “poesia decida acabar com a linguagem”.
No palco do Cabaret Voltaire, em Zurique, uma casa noturna aberta por diversos artistas expatriados (cujo nome é uma homenagem ao filósofo e satirista francês do século 18), Ball recitou o “poema proposta”, cujos primeiros versos eram assim: “gadji beri bimba / glandridi lauli lonni cadori…”.
Absurdo total. Evidentemente dirigido a uma gente que parecia se fazer condescendente com os absurdos da guerra que corria. A intenção de Ball era chocar. “Toda essa carnificina civilizada busca um triunfo da inteligência europeia”, disse. O poeta franco-romeno judeu Tristan Tzara descreveu seus shows noturnos como “explosões de imbecilidade eletiva”.
Estava criado o Dada. Richard Huelsenbeck, tal e qual um expatriado poeta germânico em Zurique, estava com Hugo Ball quando encontraram a palavra em um dicionário. “Dada é sim, sim em romeno, cavalo de balanço ou cavalo de pau em francês. Tzara, espertamente, rapidamente cunhou alguns pôsteres com a palavra. Veio a publicar o primeiro periódico dadaísta, e não menos espertamente depois assumiu para si a autoria do termo. Escreveu, no entanto, alguns dos manifestos mais importantes do movimento. Nenhum deles com muito sentido, é claro.
Era “um micróbio virgem” escreveu Tzara em seus diários depois. Disse isso porque a coisa toda se espalhou como um vírus. O Dadaísmo se tornou uma verdadeira pandemia, que durou mais ou menos de 1916 até 1922. No período houve a Primeira Guerra e a Revolução Russa. De Berlim a Paris, Nova York, e abriu as asas além do ocidente, indo dar as caras em Tóquio. Foi um dos mais influentes manifestos artísticos da arte moderna.
Os happenings dadaístas eram marcados por performances absurdas. “Total pandemônio”, descreveu Hans Arp, à época um jovem franco-germânico também em trânsito (ou em transe) por Zurique, sobre o que vira no inferno do Cabaret Voltaire: “Tzara está balançando o traseiro como a barriga de uma dançarina oriental. Janko (Marcel Janko, pintor) está tocando um violino invisível. Madame Hennings (mulher de Ball) com cara de Madonna, está regendo a orquestra. Huelsenbeck toca um grande tambor, com Ball acompanhando-o no piano, pálido como um fantasma”.
Essas loucuras eram uma espécie de resposta, por não serem mais absurdas do que a própria guerra. “A guerra é em um erro crasso”, escreveu Hugo Ball em seu diário. “Os homens foram confundidos com máquinas”, conclui.
Para além da guerra, o impacto da mídia moderna, a tecnologia emergente e a era industrial provocaram os artistas dadaístas. Os “dadas” zombavam da evolução desenfreada e desumana. Obras como um bloco de engrenagens e mecanismos de relógio eram expostas como arte, sem tentar explicar nada. O símbolo do tipógrafo de uma mão apontando apareceu com frequência na arte dadaísta e tornou-se um emblema para o movimento.
Marcel Duchamp desenhava como um engenheiro mecânico em vez de um artista. Foi o modo que encontrou para tornar sua arte impessoal. O traçado mecânico, que se coloca “fora de qualquer convenção pictórica”, descreveu certa vez.
Assim, todas as vezes nas quais os dadaístas optaram por representar a forma humana, ela foi mutilada ou feita para parecer manufaturada ou mecânica. Algo a ver com os aleijados da guerra. Dois artistas de Berlim, George Grosz e John Heartfield, transformaram um manequim de alfaiate em tamanho real em uma escultura adicionando um revólver, uma campainha, uma faca e um garfo e uma Cruz de Ferro do Exército Alemão. Deram-lhe uma lâmpada de trabalho para uma cabeça, um par de dentaduras na virilha e um candelabro como uma perna artificial. Representava um robô, por certo.
Duchamp foi o mais exitoso expoente do dadaísmo. Francês, nascido perto de Rouen em 1887, transformou ferramentas de ciência e tecnologia em arte. Sua pintura mais conhecida ainda dos tempos do cubismo foi o Nu Descendo Uma Escada no. 2 (1912). O quadro foi inspirado pelos primeiros estudos fotográficos de stop-action de movimento. Na obra, uma figura feminina parece assumir a anatomia de uma máquina.
Rejeitada pelo júri do Salon des Independants de 1912 em Paris, a pintura causou sensação nos Estados Unidos quando foi exibida em Nova York no Armory Show de 1913. O quadro foi comprado por 240 dólares, assim como três outros. Dois anos após a exposição, Duchamp e o também francês Francis Picabia — cujas pinturas tal e qual haviam sido vendidas no Armory Show — saíram de Paris e foram viver em NY. Duchamp encheu seu estúdio na West 67th Street com objetos adquiridos em lojas que ele veio a chamar de “readymades”. Dizem que não, mas provavelmente ele sabia que estava mudando os rumos da arte moderna.
“Você tem que abordar algo com indiferença, como se não tivesse emoção estética. A escolha dos readymades baseia-se sempre na indiferença visual e, ao mesmo tempo, na total ausência de bom ou mau gosto”, revelou. Duchamp não exibiu seus readymades logo de cara. Mas sem dúvida encontrou neles uma maneira de alterar as ideias sobre arte estabelecidas até então.
Quando passeava em uma tarde de 1917 pela Quinta Avenida em Manhattan, comprou um mictório de porcelana intitulado Fountain. Adotou a assinatura de R. Mutt e o enviou a uma exposição da Society of Independent Artists em Nova York. Alguns dos organizadores da mostra ficaram horrorizados, e a peça foi rejeitada. Duchamp renunciou ao cargo de presidente do comitê de exposição em apoio a Mutt e publicou uma defesa do trabalho. A publicidade que se seguiu ajudou a tornar a Fountain um dos símbolos mais evidentes do Dadaísmo, juntamente com a gravura da Mona Lisa de Leonardo da Vinci no ano seguinte, à qual Duchamp acrescentou um bigode e cavanhaque a lápis, estilo Salvador Dali.
Adotando sempre em tom de paródia ao “método científico”, Duchamp fez volumosas anotações, esquemas, diagramas e estudos para sua obra mais enigmática, The Bride Stripped Bare by Her Bachelors, Even, ou The Large Glass, algo como “A noiva despida por seus celibatários, mesmo, ou o grande vidro” – uma montagem de três metros de altura de folha de metal, fios, óleo e verniz, ensanduichados entre painéis de vidro.
A irreverência de Duchamp em relação à arte (e à ciência) era compartilhada por dois de seus companheiros de Nova York, Picabia e o jovem fotógrafo americano Man Ray. Picabia dominava a técnica da pintura, e tinha as manhas de desenhar feito um artista comercial, realizando assim diagramas sem sentido parecerem totalmente convincentes. Ray fotografava os esquemas e as obras de Duchamp, colocando seu próprio estilo na fotografia, manipulando imagens na câmera, criando uma espécie de ilusão em seus fotogramas.
Ao fim da Guerra, em Berlim, a artista Hannah Höch deu um toque doméstico irônico ao Dada com colagens que incorporavam padrões de costura, fotografias recortadas de revistas de moda e imagens de uma sociedade militar e industrial alemã em ruínas.
Em Colônia, em 1920, o artista alemão Max Ernst e um bando de dadaístas locais, realizaram a Dada Early Spring no pátio de um pub. A polícia acabou com a festa acusando os artistas de obscenidade por uma exibição de nudez. Mas a acusação foi retirada quando constatou-se que a “nudez” era a impressão de uma gravura de 1504 de Albrecht Dürer intitulada Adão e Eva, que Ernst utilizou, incorporando-a em uma de suas esculturas.
Em Hanover, o artista Kurt Schwitters começou a fazer arte com os detritos da Alemanha do pós-primeira-guerra. A construção de forma livre construída com objetos encontrados e formas geométricas que o artista chamou de Merzbau começou como um par de colagens tridimensionais, ou assemblages, e cresceu até sua casa se tornar um canteiro de colunas, nichos e grutas. Com o tempo, a escultura realmente atravessou o telhado e as paredes externas do prédio. Ele ainda estava trabalhando nisso quando foi forçado a fugir da Alemanha pela ascensão dos nazistas ao poder. No final, a obra foi destruída por bombardeiros aliados durante a Segunda Guerra Mundial.
O último grito do dadaísmo ecoou em Paris em 1922, quando Tristan Tzara, Ernst, Duchamp e outros pioneiros participaram de uma série de exposições de arte provocativa, repleta de performances, nudez, produções teatrais ruidosas e manifestos. Tudo já tão incompreensível o quanto se pôde, em uma época na qual todos já estavam tentando querer entender algo.
Nascido para — e devido a — os escombros, o Dadaísmo já estava em ruínas. O poeta francês André Breton aderiu, e publicou seus próprios manifestos, mas desentendeu-se com Tzara. Muitos já estavam fora da cena. O nazi-fascismo ainda incipiente começava a dar suas caras pela Europa. No início daquela década, Breton já estaria criando a próxima vanguarda: o Surrealismo.
E assim começava de fato e propriamente o século 20.
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Ouça. Leia. Assista:
Viva Dada – La nascita del Dadaismo
Dadaísmo – por Dietmar Elger – Estante Virtual
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Imagens: reprodução