Crônica dos dias seguintes

WagnerRengel;FaenaRossilho

Tenerife - Crédito: Faena Rossilho

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Para acreditar no diabo é preciso acreditar em deus.

Me disseram que me exponho demais. Mas não sou eu. E quando sou, já fui, não sou mais. Metamorfose ambulante. Nasci no mesmo dia do Raul, trinta anos depois e me sinto um tanto que capturado por uma ideia maluca e, beleza, tudo certo. Estou sentado em minha cama, tomando meu café pra fumar…

Acumulo dias e dias, desde que nasci, em mim, na minha pele, cortada, cada vez mais enrugada em marcas dentro e fora de um corpo que sou eu. Minha consciência, despedaçada em histórias fragmentadas, se organiza quando falo. E tenho falado pouco. Sigo organizado por uma inconsciência e, como a própria palavra diz, desconheço boa parte de seus movimentos. Dá certo. Eu acho.

Já percebi que os dias indiferentes me causam dores apertadas. Dias em que o céu é um opaco denso e pesado, sem nuvens, nem sol. Um dia, dois, três, uma semana, às vezes duas numa indiferença crônica que me sinto tomado por uma espécie de sufoco que vem de dentro. Fico imaginando uma máquina enorme que sopraria as nuvens dali de cima para fazer um pequeno furo, uma diferença para acalmar minha agonia. Mas, ainda bem que a máquina não existe e o dias passam e não são eternos. Uma hora o sol volta, as nuvens pincelam o céu e as sombras surgem debaixo das árvores. Ufa. O dia seguinte chega.

Mas, nem sempre esse dia seguinte acorda. Dorme até tarde e ultimamente ele não tem mais saído da cama.

A mesma sensação que descrevi acima tem me tomado nesses dias em que tudo que é possível acontecer no céu, acontece. Curitiba tem esse jeito. Sol, calor, chuva, frio, calor de novo e assim vai numa única vinte e quatro horas.

São dias em que a previsão do tempo é o que menos importa, muito menos a cor do céu, nem as diferenças meteorológicas. Nada disso.

São dias e mais dias tristes, tragédias, crimes, desgraças, acidentes e as palavras que nomeiam as cenas são poucas e quase não servem para nada. Há uma outra nuvem por aqui que insiste em ficar, que insiste em anunciar o tempo todo nossa ignorância, nossa fragilidade, nossa estupidez.

Eu havia prometido para mim mesmo, num lapso raro de consciência, que não falaria aqui desse cotidiano desumano dos últimos dias. Minha proposta era de trazer justamente um respiro, uma batida num tambor para despertar os hipnotizados pelo sistema de uma rotina devoradora, riscar um fósforo para descobrir que devemos sair daquela caverna descrita por Platão. Sei que é uma pretensão minha, mas eu me esforço para isso.

Essa nuvem não nos dá uma folga, não nos deixa. Dia após dia, esperamos já o que vem de pior amanhã, daqui a pouco e nunca ficamos tão à mercê de uma fragilidade. Não quero aqui dar mérito de julgamento, dizer de crimes, irresponsabilidades. Essa lama toda não precisa de julgamento. Em si ela já é condenada por quem acredita na cultura e na civilização. Mas, queremos justiça antes que o anseio por vingança se estabeleça.

Enfim, hoje só quero dizer que os dias seguintes são difíceis, são ausentes de voz pela manhã, são sonhos acabados de garotos que só queriam jogar bola, são fins por uma chuva que acaba com restos de esperanças, são todos os perdidos afogados por uma lama tóxica de um mercado dirigido por bárbaros. São dias seguintes de vazios, de olhos grandes, assustados em dor e silêncio.

Não se pode falar hoje, no dia que já passou, de uma esperança que não nasceu, de um sorriso de um rosto que as lágrimas nem secaram, de um susto aonde não há mais distraídos. Me sinto cansado, quero um buraco nessa nuvem, que os dias passem, que recuperemos um pouco de alguma coisa que não nos afogue na solidão e no desamparo que aponta para nós a fragilidade da vida, a velocidade do tempo, nossa insignificância. Quero alimentar os sonhos, quero antecipar conquistas, sustentar as ilusões de que não estamos sozinhos num sorriso honesto.

Esse sufoco que vem de dentro há de encontrar uma brisa, depois que passar o dia seguinte, depois que pudermos reafirmar que mesmo sabendo que para além do céu não há nada, ainda assim possamos contemplar as estrelas. Alguém me disse isso um dia.

Toca o barco.

 

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