Poema épico e inovador derrubou as barreiras culturais na década de 1950 e abriu caminho para autores e artistas pop que vieram depois
Em 7 de outubro de 1955, na Six Gallery em San Francisco, há 69 anos, um jovem poeta de 29 anos chamado Allen Ginsberg leu seu mais novo poema O Uivo (Howl) em um sarau de plateia lotada. Ginsberg havia começado a escrevê-lo havia pouco mais de um ano. Só o publicou no ano seguinte, em 1956.
Quando sua publicação completou 60 anos, em 2016, houve uma celebração no Hotel Ace, em Los Angeles, com uma programação musical que incluiu nomes distintos entre si como Devendra Banhart, Nick Cave, Macy Gray, Courtney Love e Beth Orton. Um combinado que sugere como O Uivo permeou a cultura popular e, indo além de qualquer outra obra literária do século 20, acabou por ajudar a moldar também a música pop da forma como ela é hoje.
Ginsberg, já uma espécie de “multimídia” em sua época — antes de muitos outros artistas — fez muitas incursões pessoais na música, desde parcerias com Paul McCartney, Philip Glass e The Clash até seu hino punk budista experimental de 1981, Birdbrain. É possível vê-lo ao lado de Bob Dylan em diversos filmes a respeito do bardo folk americano. Especialmente no recente Rolling Thunder Revue, de Martin Scorcese, acerca da turnê de Dylan em 1975.
É preciso dizer: Ginsberg foi parte da tríade fundamental do movimento Beatnik, ao lado de Jack Kerouac e William Burroughs. Todos, e ainda o fundamental poeta e editor Lawrence Ferlinghetti, tinham em verdade uma certa vocação para “guru” de uma geração. A diferença é que Ginsberg assumiu a função. E não foi involuntário. Como se diz em francês: il avait l’élan.
Ele tinha a “coisa”. Como relatou Lawrence Ferlinghetti: “a maioria dos poetas estava trabalhando em alguma coisa, mas alguém tinha que cuidar da loja”. Verdade. Ferlinghetti era dono da City Light Books, meca da galera em San Francisco desde aquela época até hoje, após sua morte, aos 101 anos em 2021. Ginsberg, ao contrário, era de fato um beatnik com o pé na estrada.
O Uivo, porém, foi onde tudo começou. Um fenômeno alucinante que deu início à corrida entre a poesia e o rock’n’roll. Aterrorizou a sociedade e o american way of life, na década de 1950, a década do Macartismo. Parece brincadeira, mas não era. Em 1957, um funcionário da livraria de Ferlinghetti foi preso por vendê-lo, e Lawrence foi processado por publicar o poema.
É um poema que sobrevoa o universo das drogas, alienação, capitalismo, promiscuidade, a indústria opressora, a necessidade de expressão, a conformidade, a sexualidade e que versa belissimamente sobre a “beleza” de estar na rua da amargura. Destruiu costumes e rompeu fronteiras até então muito bem estabelecidas. Através de seu estilo de escrita, sua métrica próxima do jazz bebop e sua sugestão de imagens, inspirou naturalmente músicos do universo popular e afeitos à vanguarda.
Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela
loucura, famintas histéricas nuas,
a arrastarem‐se na aurora pelas ruas de negros em busca de uma
dose feroz,
gingões de angélicas cabeças ardendo pelo velho contacto celeste
com o dínamo estelar na maquinaria da noite(trad: Margarida Vale de Gato)
É possível traçar paralelos entre a cultura hippie, que daquele encanto nasceria, e o movimento folk, que gerou Bob Dylan e Joan Baez, vozes tão importantes para a revolução social que se construiu monstruosamente, como fosse uma onda em Nazaré — a praia em Portugal das ondas gigantes, não a terra de Jesus, em que pese a retórica algo bíblica contida em O Uivo.
“Ambos os movimentos rejeitaram o intelecto pela sensação, a política pela arte, e Ginsberg e Kerouac glorificaram uma América popular que incluía supermercados e carros, bem como montanhas e torta de maçã”, escreveu Ellen Willis, em seu ensaio Before de Flood (1967). O Uivo condena a autoridade, mas celebra a festa, com Dionísio no coração de seus versos.
Dos hippies para os punks, a partir de Patti Smith, em cujo trabalho Ginsberg deixou uma marca absoluta. Ela própria admite que sua estreia em 1974, com Piss Factory, não teria existido sem O Uivo. Piss Factory é um poema com “batida”, e ninguém (ainda) fazia isso — os pretos de NY e LA fizeram em seguida: o rap, outra revolução, assunto para outro dia. No final dos 1970’s, o poema épico de Ginsberg já havia contaminado artistas como Ian Curtis e David Bowie.
Dá pra dizer que o juiz Clayton Horn — que rejeitou o caso contra Ferlinghetti e considerou que o poema era de “importância social redentora” — colocou em movimento um novo mundo. A “máquina” demorou ainda um tanto a rodar com força, mas resultou em um mundo (estamos no ocidente, por favor) no qual músicos e artistas populares podem expressar a sua sexualidade sem se preocupar com as noções antiquadas de comportamento.
Paulo Leminski dizia em elevada e utópica inspiração que “os povos amam seus poetas”. Exagerado, mas sem estar desnutrido completamente de razão, eis a verdade. O Uivo foi exemplo de um poema que agiu como um míssil contra o conformismo e a censura, funcionando como redenção de todo um povo.
Dizem que Ginsberg foi incentivado por Ferlinghetti a “falar com o coração”. E foi com essa pedra fundamental do encorajamento que compôs seu poema. “Ele não tinha medo de ser humano”, disse o produtor David Wrench. “Não há nada do que se envergonhar. É tudo comemorativo”.
Allen Ginsberg acabou por inaugurar uma espécie de novo “ecossistema”, e tornou-se um dos alicerces do rock moderno. Um artista pop de hoje pode não ter sido influenciado por O Uivo, mas foi influenciado por algo que o poema influenciou.
Ginsberg brincou com as palavras, usando-as para criar o esqueleto do poema, cuja primeira parte é construída sobre a palavra “quem”. “Eu dependia da palavra ‘quem’ para manter o ritmo, uma base para manter a métrica, retornar e decolar novamente para outra onda”, escreveu ele em 1959. O poeta foi uma porta de entrada para gerações de músicos ocidentais explorarem as religiões orientais, o que trouxe para a música rock um novo reino de espiritualidade e misticismo. Acho que não é preciso citar os Beatles aqui.
O filme O Uivo (Howl, 2010, não confundir com o homônimo de terror, de 2016) escrito e realizado por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, com James Franco no papel de Ginsberg, retrata o caso do julgamento de Ferlinghetti e um tanto da vida pregressa de Allen Ginsberg.
Podemos perguntar: quase sete décadas depois de ter sido apresentado pela primeira vez, O Uivo ainda é relevante? Devendra Banhart diz que, a ele, “não parece nada datado”. “Allen está escrevendo sobre injustiça e ainda há injustiça; ele está escrevendo sobre libertação, ainda há necessidade de libertação; ele está escrevendo sobre a sede de paz, liberdade, revolução, todas essas coisas ainda são uma preocupação proeminente dos nossos tempos. Na verdade, eles foram ampliados. O Uivo não tem data de validade”, revela o norte-americano-venezuelano.
O Uivo não foi um sopro. Foi de fato algo que ressoou em outras luas cheias, na boca de lobos de outras matilhas.
Estamos aqui.
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Ouça. Leia. Assista:
Uivo, o poema – seguido de Kaddish – PDF
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Imagens: reprodução