Christiane Jatahy ganhou Leão de Ouro na Bienal de Veneza pela trajetória e monta peça baseada em ‘Torto arado’


Espetáculo encerrará o que diretora chama de ‘trilogia do horror atravessada pelo governo fascista de Bolsonaro’ e conta apenas com apoio internacional: ‘Maneira de dar condições de trabalho dignas a artistas brasileiros, que estão sendo desvalorizados’

A solidão foi a grande companheira de Christiane Jatahy durante a primeira infância. A mãe tinha apenas 16 anos quando a pariu. Da parte do pai, viveu o abandono completo. Na casa onde morava, a atmosfera era a de uma família marcada por tragédias. A avó materna havia perdido três filhos para a hemofilia, e o marido, em um desastre de avião.

A menina precisou inventar um universo próprio para escapar da dor. Seu refúgio eram os livros e a imaginação. Passava horas transformando os pensamentos em brincadeiras concretas. Essa talvez tenha sido a primeira pista do que se tornaria quando crescesse. Aos 7 anos, veio o segundo sinal. A formação de um novo núcleo familiar após o casamento da mãe, inaugurou as idas ao teatro e a prática de copiar os textos das peças junto com as tias para montá-las em dias de festa.

O encontro da criatividade solitária com o exercício coletivo forjou, portanto, a base do que a dramaturga e diretora é hoje. E não é pouco. Além de ser reconhecida na cena nacional como umas das mais inquietas criadoras da atualidade, Christiane acaba de ganhar o Leão de Ouro da Bienal de Veneza pelo conjunto de sua obra, que transita entre as fronteiras da realidade e da ficção. O prêmio, anunciado no mês passado e que será entregue no dia 26 de junho, coroa sua trajetória, uma história em que ela e equipe uniram pesquisa artística para ampliar as fronteiras da linguagem teatral e abordar temas políticos importantes.

“Christiane Jatahy funde as margens do cinema e do teatro” para “explorar aqueles territórios mais difíceis” e gritar a verdade “a cada um dos espectadores”. Assim os responsáveis pelo prêmio de Teatro de Veneza definem o trabalho da brasileira, que se divide entre o Rio e Paris.

—  Esse prêmio é importante porque não é só sobre o artístico, mas sobre que ação tenho no mundo, sobre coerência política. Ainda mais nesse momento em que os artistas são tão desvalorizados no Brasil e há a criminalização de tudo que é ligado ao pensamento intelectual e artístico —, diz a carioca de 54 anos, que se arriscou como atriz, se virou como professora de teatro em busca de sustento e não só se formou na área como também em jornalismo.

Para Christiane, “teatro é ação polítíca”. Não aquela que se faz lá em Brasília, mas a que nos forma, as questões sociais que nos atravessam.

— Tento ser coerente com a pesquisa, mas também com o que acho importante ser falado. Esse reconhecimento confirma como a gente não tem como estar em qualquer lugar sem falar de onde a gente é. E que, hoje, falar do lugar de onde somos é fundamental para que isso seja olhado. Porque a maneira como o Brasil está sendo visto lá fora é horrorosa.

A peça 'Julia', de 2011, chamou atenção do mundo para o trabalho de Christiane Jatahy Foto: Divulgação
A peça ‘Julia’, de 2011, chamou atenção do mundo para o trabalho de Christiane Jatahy Foto: Divulgação

Desde 2011, Christiane tem feito o mundo pegar sua visão. Já havia apresentado lá fora trabalhos como “A falta que nos move” e “Conjugado”, mas, naquele ano, conquistou  dezenas de programadores de teatro de diferentes países, que circulavam pelo Rio graças a uma iniciativa da prefeitura. No que eles assistiram à peça “Julia”, cujo tema central era racismo, choveram convites para apresentações internacionais.

Assim, a diretora foi estabelecendo pontes que a fizeram tornar-se artista associada a instituições como Odéon-Théâtre de L’Europe, Centquatre-Paris, Schauspielhaus Zürich, Arts Emerson Boston e Piccolo Teatro de Milano.

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Christiane Jatahy: ‘A maneira que o Brasil está sendo olhado lá fora é horrorosa’
Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Fonte: O Globo