Ícone da música latino-americana completou recentemente 50 anos de carreira. Uma trajetória repleta de confronto, inovação e muito folclore
Carlos Alberto García já protagonizou todo tipo de escândalo que pode constar na lista de um artista de rock. Quebrou hotéis, tocou bêbado, consumiu drogas de gêneros variados; invadiu um show de Bruce Springsteen em Buenos Aires (el jefe acá soy yo!); quebrou uma taça de vinho arrancando-a das mãos de Björk, de quem procurava chamar a atenção (usted no és nada, yo soy mucho más!); se atirou da cobertura no nono andar de um hotel para escapar da polícia, perfazendo uma queda de 18 metros em uma piscina de 2,5m de profundidade, e saiu nadando, como nada acontecesse.
Charly García é considerado o maior símbolo do rock argentino, definiu o som de uma geração, e reverberou por toda a América e o mundo. É meio que um extrato de toda música produzida em seu país na segunda metade do século 20 e no início deste. É dono de timbres, sons e sotaque instantaneamente reconhecíveis. Influenciou artistas não apenas na América Latina, mas em todo o planeta.
Tem uma carreira construída ao longo das últimas cinco décadas. Seu repertório está repleto de músicas incríveis que se tornaram alguns dos hinos mais entoados da história. Charly é uma espécie de expressão cultural da Argentina moderna, em todas as suas contradições. É o pai de um gênero, com uma identidade única, que todos os que o seguiram ainda não conseguiram superar.
A verdade é que Charly nasceu, cresceu e viveu naquilo que dá pra gente chamar de “época certa”. Veio à luz em Buenos Aires, 1951, filho de um professor e de uma produtora de rádio. Desde novo, exposto a toda sorte de espectro musical, dentro do qual começou a desenvolver um ouvido para melodias e arranjos, sendo um virtuose do piano. Aos cinco anos começou a estudar música clássica (Bach, Mozart e Chopin), e aos 12 formou-se como professor de teoria musical. Na adolescência viu acontecer a beatlemania e o rock ser forjado em seu país. Era de fato a época.
Sob o auxílio luxuoso do veterano Billy Bond e seu coletivo La Pesada del Rock’n Roll, montou sua primeira banda Sui Generis com o parceiro de colégio Nito Mestre. Lançou os dois primeiros álbuns: Vida (1972) e Confesiones de Invierno (1973). Logo de cara, clássicos irrepreensíveis del rock nacional de todos os tempos.
O Sui Generis se separa em 1975 depois de tocar para vinte mil pessoas no Luna Park em Buenos Aires. Logo em seguida, García formou La Máquina de Hacer Pájaros, que resulta em outros dois álbuns, um autointitulado lançado em 1976 e Películas em 77.
Da inspiração folk no Sui Generis avançara para a psicodelia e o progressivo com La Máquina… mas sua personalidade musical já começava a dar sinais de que não iria seguir estereótipos quais fossem, algo ainda inédito em solo portenho. O rock argentino era abertamente inspirado no blues, que por sua vez, por toada e espírito, concedia naturalmente espaço para a influência local dos tangos e milongas. Charly procurava, intuitivamente ou não, se afastar da música latina tradicional e criar um estilo mais aproximado com o que se fazia na Europa e no mundo.
Em 1977, García se apaixonou por uma bailarina que integrava a trupe de Milton Nascimento e veio morar no Brasil, aproveitando para fugir da repressão já instaurada na Argentina, sob a ditadura de Videla. Se instalou em Búzios, onde compôs e concebeu um novo grupo. Voltou a Buenos Aires para formar a banda com o guitarrista e compositor David Lebón, o baixista/tecladista Pedro Aznar e seu antigo parceiro de La Máquina de Hacer Pájaros, o baterista Oscar Moro.
Nasce assim o Serú Girán, com ensaios em Búzios e gravação em São Paulo — novamente com Billy Bond (que estava já no Brasil) “ligando as paradas”. Era o primeiro “supergrupo” argentino. Lançam Serú Girán em 1978, assinam contrato com a Columbia, emplacam uma infinidade de singles e alguns álbuns, incluindo Bicicleta e Peperina, até 1982, período no qual se tornaram o maior grupo em êxito comercial até então revelado em seu país de origem.
O relacionamento de Charly García com a imprensa começa a se tornar atribulado. O novíssimo grupo tem abordagens que rumam para o jazz, com cantadas pop, o que causa certo estranhamento na crítica. No entanto, esse novo formato funcionou junto ao público. Além de tudo, era um repertório repleto de críticas abertas ao regime, com retratos amargos da vida cotidiana na Argentina.
E Charly já começava também a acusar os golpes que as drogas lhe aplicavam. Os repórteres lhe faziam perguntas que ele julgava provocações, acerca de sua saúde mental. Xingamentos, respostas irônicas, Charly não era fácil. Altas tretas.
A fama de García não diminuiu, entretanto. 1983, ano no qual produziu o álbum de estreia do Los Twist, La Dicha en Movimiento, e gravou seu próprio trabalho solo seguinte, Clics Modernos, nos estúdios Electric Ladyland em Nova York, foi um verdadeiro marco.
Clics Modernos representa uma guinada. O álbum tem uma estrutura voltada para o pop/rock new wave, e é infinitamente mais simples que seus trabalhos anteriores. Sintetizadores, samples e ritmos dançantes. O álbum vendeu um milhão de cópias e a partir daí Charly Garcia imprimiu sua marca em toda a América.
Certamente sob a influência de drogas, foi no final de 1983 que Charly baixou as calças diante de uma plateia ao vivo — a primeira de uma série de escândalos que não teria mais fim ao longo das décadas seguintes.
A qualidade das composições e a musicalidade fora do comum, agora engrossada pela batida dançante da new wave e impulsionada pelo boom do rock na Argentina pós ditadura, deram matiz ainda mais glamuroso àquilo que já era um som ousado, repleto de variantes e floreios harmônicos que impressionavam.
Com sotaque pop e letras ainda politicamente carregadas de crítica social, seus próximos lançamentos Terapia Intensiva e Piano Bar, formaram com Clics Modernos uma trilogia que dá pra chamar de “oitentista”.
A metade dos anos 80 foi um período prolífico e de sucesso para Charly, lançando uma colaboração com seu antigo colaborador de Serú Girán, Pedro Aznar (Tango, 1986), bem como os grandes sucessos Parte de la Religión e Rezo Por Vos (com Luis Aberto Spinetta).
Em outubro de 1988, uma turnê da Anistia Internacional terminou em Buenos Aires. Mais de 80 mil pessoas compareceram ao show encabeçado por Peter Gabriel, Sting, Bruce Springsteen, Tracy Chapman e Youssou N’Dour. Num evento emocionante, com as Madres de Plaza de Mayo enfeitando o palco, ainda os locais León Gieco (uma espécie de Bob Dylan argentino) e Garcia. Foi um desagravo da Argentina para com a sua história de terror recente.
Apesar da carreira em expansão, Charly mergulhou forte nas drogas e no álcool. No início da década de 1990, gravou um álbum intitulado Filosofia Barata y Zapatos de Goma, que teve participações especiais de parceiros de longa data. Andrés Calamaro e Fabiana Cantilo, Nito Mestre (do Sui Generis), novamente Pedro Aznar, entre outros. O álbum inclui a versão rock de Charly para o hino nacional argentino.
Em 1991, se reuniu com Pedro Aznar e gravou Tango 4. Talvez inspirado por seu antigo colega de banda, ele logo anunciou uma reunião de Serú Girán, lançando uma nova sessão de músicas intituladas coletivamente de Serú 92.
Charly lança La Hija de La Lágrima em 1994 e realiza um matador MTV Unplugged, que foi enorme sucesso comercial e lhe trouxe um novo público internacional. Pouco depois, lança Say No More (1996).
Perto dos 50 anos, Charly adentra os anos 2000 e se apresenta um tanto velho e abatido. Seu desempenho abaixo da média no álbum seguinte, Rock and Roll Yo, deixa os fãs na eterna aflição de acordar um dia com as manchetes de jornal anunciando sua morte.
Charly permanece vivo, como por milagre. Em 2011, lança Kill Gil e um DVD ao vivo. No ano seguinte, editou e produziu o box set 60×60 ao vivo compilado para comemorar seu 60º aniversário. Parceiros de geração como Luis Alberto Spinetta e discípulos mais novos como Gustavo Cerati morrem. Charly, el loco, não.
Lançou seu álbum mais recente, Random, em 2017. Retornou fortíssimo às rádios e streamings, e recebeu ótimas críticas. O disco é um verdadeiro espetáculo de contemporaneidade.
Não é difícil perceber que Charly García construiu e destruiu sua carreira inúmeras vezes durante 50 anos. E como na cena (incrivelmente filmada!) em que se joga da piscina daquele hotel, quando todos pensam o pior, aparece nadando tranquilamente logo em seguida, para espanto geral.
Reconstrói-se. Como nada houvesse ele próprio destruído.
Una verdadera autoridad!
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Ouça. Leia. Assista:
Charly García – Clics Modernos (1983)
Charly Garcia – Hello! MTV Unplugged (1994)
40 Años de Clics Modernos – Revista Rolling Stone
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Imagens: reprodução