Carta Aberta Para a Mulher Branca


Carta Aberta para a Mulher Branca

Começo explicando que sou uma mulher de imagem branca. Muito branca para ser preta, muito preta para ser branca. Sou de ascendência indígena e certamente tenho pessoas pretas na minha genealogia, meu avô materno era indígena de olhos azuis, minha avó paterna não era uma mulher propriamente branca. Minha mãe se casou com um descendente de italianos, de forma que somos 4 filhos, dois de pele mais escura e cabelos lisos, dois mais claros, um de cabelos lisos e eu de cabelo de crespo.

Meu “cabelo de bombril”. “Cabelo ruim”. “Duro”. Ele é meu e demorei muito para acolhê-lo assim e ele é lindo. Mas por tempo demais da minha vida, foi daquele que precisa de bobe quente, de chapinha, de touca, que era um negócio horroroso feito com grampo na cabeça, dando uma volta de cabelo em sua circunferência para dormir com aquele cabelo repuxado e no dia seguinte, acordar minimamente lisa. Mas no senso comum, minha pele é branca. E para o censo do IBGE.

Meu irmão mais novo tem toda fenotípica indígena. Não posso usurpar a história dele, mas posso falar das coisas que passamos juntos na infância. Havia racismo. Muito racismo e de pessoas próximas, inclusive. “Negão”, beringela, pau-de-fumo e até entre nós mesmos, nós usávamos a ofensa fantasiada de afeto.

No entanto, a gente demora um pouco para entender que aquilo é mais que ofensa boba e infantil. A gente era criança, replicava o que ouvia sem entender. Conforme fui crescendo e percebendo como as coisas funcionavam, passou a doer em lugares que num primeiro momento, eu era incapaz de imaginar. O primeiro golpe aconteceu cedo.

Eu tinha uma amiga no terceiro ano que se chamava Marta e fazíamos juntas o caminho da escola. Achavam que ela morava na minha casa, porque meu irmãozinho estava sempre nos esperando no portão e ele se parecia muito mais com ela do que comigo. Nós passávamos num grupo de crianças por uma banquinha de revistas e sempre parávamos para olhar as coisas que não podíamos comprar. Éramos a Marta, eu e uma menina loirinha de olhos azuis que vou chamar de Rúbia.

Rúbia tinha o costume de pegar revistas sem pagar e colocar na bolsa. Sabíamos que isso era errado, muito errado, mas a gente cresce acreditando que delatores são os bandidos da história e não os executores dos crimes. Eu e a Marta ficávamos com as mãos para trás, a fim de evitar mal-entendidos. Silenciávamos a conduta, até que um dia, a dona da banca que já vinha havia tempos notando o sumiço das revistas quando passávamos por lá, ficou atenta.

Marta com os braços para trás, ao meu lado. Rúbia circulando livre pela banca. Quando saíamos, a mulher agarrou no braço da Marta e começou a gritar: “sua negrinha imunda! É você que vem roubar gibi aqui, né! Isso é coisa de preto! Não tem um que preste! Pois eu vou tirar a blusa da escola de você e sua mãe terá que vir buscar!” Nesse momento o desespero tomou conta de nós duas, estávamos paralisadas.

Rúbia se assustou, mas em nenhum momento entrou em pânico. Quase fiz xixi nas calças.  A mulher se negava a nos ouvir e foi violentamente arrancando a blusa de uma menina de 9 anos. E como alguns diriam “ela nem era tão preta”, mas era a mais preta de nós. Respirei fundo enquanto Rúbia virava as costas e gritei: Devolve a revista! Ela parou, incrédula.

A mulher, branca, mais incrédula ainda, parou com a cena de tortura. Eu era grande, gorda e briguenta, não era negócio comprar briga comigo. A menina tirou o gibi e devolveu, assim como a mulher devolveu a blusa. Marta ficou 3 dias sem ir para a escola. Na minha cabeça as palavras ditas para ela latejavam e daquele dia em diante, a minha inocência se foi. Nunca mais voltamos cantando. Nunca mais ela parou na minha casa para brincar de olimpíadas, uma luz nela se apagou. A vergonha. A injustiça. A constatação de que a vida seria assim.

Coisa de criança, mas eu sempre revia aquela cena na minha cabeça e constatei o quanto era difícil ser preto, pois, se quase pretos eram tratados assim… Foram muitas situações que provocaram muitas dores. Minha mãe foi muito discriminada. Sofreu muitas ofensas e humilhações por ser uma mulher “marrom”. Mas, a gente não deveria se ofender, afinal, nós não éramos tão pretos.

Penso muito nas pessoas retintas. Como vive uma mãe de um filho retinto. Enquanto ensinamos nossos filhos branquinhos a atravessarem a rua, essas mães orientam seus filhos a não correr quando chamados, soltarem o que tiver nas mãos e erguerem os braços para não morrer. As meninas? Humilhadas pelos seus cabelos, seus narizes, suas bocas. Crescem um pouquinho, os safados passam a olhar as formas dos seus corpos, como se elas estivessem disponíveis. Chamadas de sujas. Isoladas. As crianças com quem não é de bom tom quer brincar no parquinho.

No oeste do Paraná, numa cidade bem pequenininha, eu era essa criança. Passei por tantas dores naquele lugar… fui tão perseguida que minha mãe teve que ir à escola explicar que eu era filha biológica, que não era adotiva. Minha amiguinha inseparável era uma linda menina filha de pai indígena que era chamada pela própria família de “negresca”. A mãe engravidou sem se casar e a família não a deixou seguir a vida com aquele “índio sujo”.

Faço rodas de conversa sobre empoderamento feminino. Não há uma só ocasião que mulheres que nasceram de cabelos crespos não relatem que sequer se lembram da textura e cor real de seus cabelos. Que se maquiam de forma a esconder a fartura de suas bocas e os traços de seus narizes. Por isso, uma pessoa preta, quando se empodera, assusta a branquitude. E muito.

Esse texto nasceu na minha cabeça por causa de duas ocasiões recentes em que presenciei mulheres brancas, muito ressentidas pelo espaço de fala outorgado a mulheres pretas e pelas falas contundentes e poderosas dessas mulheres. Houve choro e ranger de dentes, porque essas mulheres brancas clamavam por representação nesses espaços, se sentiram discriminadas. Duas horas vivenciando o dia a dia de mulheres pretas e indígenas provocaram uma pane no radar de mulheres brancas, a ponto de, em um ambiente completamente progressista se falar no inexistente racismo reverso.

Cara mulher branca, as mulheres que vão para o mercado de trabalho mais cedo, que trabalham por mais tempo, que vão mais tarde para as universidades, que deixam os estudos para cuidar de filhos, que estão no sistema carcerário, que mais morrem de fome, que mais morrem de doenças curáveis, que mais morreram de COVID, foram as mulheres pretas.

Puxando o assunto para algo mais ameno, desde quando vocês vão em uma farmácia ou loja de cosméticos e se lembram de produtos para cabelos afro que não sejam alisadores? Desde quando se lembra de ter visto maquiagem para pele preta? Você que tem uma mãe preta ou parda, lembra do “pó de arroz”? Sempre vendido para dar “efeito clareador”? Tantos anos tentando embranquecer as mulheres pretas…

Mulheres pretas não podem se dar o conforto de ir ao mercado de qualquer jeito, sob o risco de serem perseguidas por seguranças e precisarem ficar seminuas para provar que não estavam furtando nada. Mulheres pretas não podem comprar uma bolsa cara sem que os vendedores sugiram algo “mais em conta” ou “na promoção”. Mulheres pretas quando entram de cabeça erguida num lugar, mostram o que sabem fazer e se atrevem a falar como um homem branco médio fala, são demonizadas.

Aqui pode surgir a crítica de que todas as mulheres enfrentam o machismo, a misoginia, os salários menores, homens tentando nos explicar nossas próprias ideias, nos interrompendo o tempo todo, sofrendo violência sexual, física, psicológica, lutando por direitos, mas, não, não estamos no mesmo lugar.

Podemos olhar nas grandes empresas, nos ambientes acadêmicos e para as mulheres nos espaços de poder: na sua imensa maioria são mulheres brancas e enquanto elas estão ascendendo, podemos apostar que em algum lugar tem uma mulher preta limpando o chão que elas pisam, ou o chão da escola que seus filhos estudam, ou fazendo a merenda, ou cuidando dos filhos brancos das mulheres brancas e deixando seus filhos pretos virarem alvos de donas de bancas de revista.

Assim, irmã branca, quando uma mulher preta ou indígena estiver num espaço de poder, falando da sua dor, da sua ancestralidade, das suas conquistas, dos seus direitos e da sua representatividade, tente não se ressentir. São anos de silenciamento não só das ideias, mas dos direitos, da liberdade de corpos, das expressões artísticas e culturais e de poder existir exatamente como se é.

Se algo lhe doer quando uma irmã preta se levanta e empodera, procure conforto na história e reconheça seu privilégio de não passar por genocídio, por escravização, por criminalização da sua etnia, de não ter negada a expressão de sua religião, de passar por tipos de opressões que pessoas de pele branca desconhecem. Fique em silêncio. Levante-se e aplauda e repita mentalmente, como um mantra: estamos no mesmo mar em que navegam as mulheres pretas e indígenas, mas não na mesma canoa. Ofereça seu remo e se não conseguir, apenas siga seu caminho.

Imagem Gerada por IA