Com apenas dez anos de trajetória diária nos jornais impressos, personagens vêm marcando gerações de leitores com seus temas atemporais
Calvin & Haroldo (Calvin & Hobbes) são personagens que iniciaram suas trajetórias em meados dos anos 1980, como uma simples tirinha sobre um menino e seu tigre de pelúcia, abordando todo imaginário fantástico infantil e suas peculiaridades humorísticas.
Com o tempo, porém, a tira tornou-se um dos cartuns mais populares e bem elaborados da história. Embora as novas tiras de Calvin & Haroldo tenham deixado de ser publicadas em 1995, após uma década nos jornais, os quadrinhos mantiveram sua imensa popularidade e seus livros ainda vendem a rodo.
Para apreciar verdadeiramente o universo do menino Calvin e seu amigo tigre é importante compreender seu criador: Bill Watterson. O autor nasceu em Washington DC, capital dos EUA, em 1958, mas mudou com sua família para Changrin Falls, em Ohio, com seis anos de idade. Cresceu nessa cidade provinciana, onde passou a maior parte da vida. O cenário de sua infância no meio-oeste norte-americano preparou o cenário para o bairro onde vive Calvin nos quadrinhos. Uma localidade essencialmente residencial, mas rodeada de bosques. Cenário perfeito para um autêntico moleque. Watterson começou a desenhar quadrinhos aos oito anos e continuou desenhando industrialmente em toda sua juventude.
Durante o ensino médio, Bill Watterson desenhou charges para o jornal da escola. Foi para a universidade e estudou Ciências Políticas. Durante os anos de faculdade, desenhou histórias em quadrinhos para o jornal universitário, incluindo as primeiras aventuras de Spaceman Spiff — que se tornariam fantasias da mente de Calvin. Depois que o primeiro trabalho de Watterson desenhando charges políticas terminou — foi demitido depois de apenas seis meses — ele começou a reconsiderar seu caminho. Trabalhou por vários anos como ilustrador freelancer e designer em uma empresa de publicidade enquanto se dedicava aos quadrinhos em seu tempo livre.
Para os aspirantes a artistas de quadrinhos no século 20 (até hoje, um tanto), o sucesso sempre dependeu quase que exclusivamente da distribuição, feita pelos chamados “syndicates”, que vendiam tiras de diversos autores mundo afora. Assim que um sindicato contratasse um artista, ele promoveria seu trabalho e o licenciaria para jornais interessados em divulgar o conteúdo.
Enquanto trabalhava com publicidade, Watterson redigiu repetidamente diversos cartuns e os enviava a um sindicato. Acabava invariavelmente recusado. Finalmente, depois de seguir alguns comentários do editor de um deles, Watterson refinou dois personagens de uma de suas propostas rejeitadas, e Calvin e Haroldo encontraram um lar no Universal Press Syndicate, estreando em 35 jornais nos Estados Unidos. Detalhe: o editor que sugeriu o refinamento recusou o trabalho!
A história em quadrinhos que o inspirou Bill Watterson mais do que qualquer outro foi Peanuts, do autor alemão Charles Schulz (A Turma do Charlie Brown, no Brasil). Não é novidade: a maioria dos cartunistas modernos emprega as técnicas pioneiras de Schulz há décadas. Schulz foi tão influente para Watterson que este, um tímido contumaz com os jornalistas, escreveu uma homenagem a Schulz no L.A. Times quando o artista germânico se aposentou.
O estilo de Calvin & Haroldo pode ter sido influenciado pelos quadrinhos que Watterson amava quando criança, mas o conteúdo era inteiramente dele. O próprio Calvin não é um reflexo de Watterson como pessoa — o artista diz que ele é muito mais parecido com Haroldo. Os nomes dos dois personagens principais são uma homenagem a dois filósofos que estudou na faculdade. Watterson nomeou Calvin em homenagem a João Calvino, o teólogo do século XVI e crente na predestinação, enquanto Hobbes (Haroldo, no Brasil) recebeu o nome do filósofo do século XVII Thomas Hobbes, que tinha “uma visão obscura da natureza humana”, segundo o próprio Watterson.
Bill Watterson admite que muitas vezes eventos da vida real influenciaram seus quadrinhos, mas que ele não usou nenhum cenário literal de sua vida. Em vez disso, o quadrinho se concentrou em quaisquer questões que considerassem importantes para ele na época. Os personagens Calvin e Haroldo se conectaram imediatamente com o cartunista, e ele descobriu que, uma vez que os entendesse como pessoas, seria fácil escrever os personagens. Watterson poderia colocá-los em qualquer cenário e saber como reagiriam.
Muitas histórias em quadrinhos de Calvin & Haroldo eram apenas histórias divertidas, mas os quadrinhos muitas vezes também tratavam de assuntos mais pesados. Fiéis aos seus homônimos, “Calvino e Hobbes” frequentemente mantinham conversas filosóficas profundas sobre a natureza da vida, do livre arbítrio, da civilização e da morte enquanto vagavam pelo bosque. As conversas da dupla frequentemente se voltavam para importantes lições de vida desde a primeira infância, bem como para críticas sobre o tratamento que os humanos dão à natureza. Watterson também usou a tira para parodiar o mundo da arte e os críticos em particular, através das atividades de Calvin como uma espécie de “artista da neve”.
Os livros venderam tão bem ao longo dos anos que as pessoas podem achar que sejam o único lugar para ler os quadrinhos de Calvin & Haroldo. A verdade é o oposto. Ao contrário de colegas como Gary Larson, do The Far Side, que guardaram zelosamente seu conteúdo, Bill Watterson tornou seus quadrinhos facilmente disponíveis para os fãs na Internet e continuou tendo sucesso comercial, apesar dessa disponibilidade. Os fãs podem ler toda a série no site GoComics, no Internet Archive e em vários outros sites de quadrinhos. Para quem quiser adquirir esses quadrinhos em formato eletrônico, as coleções estão disponíveis no Amazon Kindle e no Google Books.
Ao contrário de muitos de seus colegas, Bill Watterson optou por não licenciar seu trabalho, tornando os livros de Calvin e Haroldo a única mercadoria oficial com os personagens. No início da popularidade da tira, as empresas ofereciam periodicamente acordos de licenciamento a Watterson. No entanto, o autor geralmente sentia que os produtos propostos contradiziam as mensagens que ele tentava transmitir através de sua arte, que muitas vezes eram anticonsumistas. Houve muita pressão do sindicato, mas Watterson é popular o suficiente para resistir à tentação milionária. Chegou a ameaçar pedir demissão se o sindicato tentasse algum licenciamento de bonecos, adesivos, objetos, etc.
No início de sua carreira, Bill Watterson imaginou que poderia continuar escrevendo histórias em quadrinhos pelo resto da vida, assim como seu ídolo Charles Schulz. Afinal, ele desenhava quadrinhos de uma forma ou de outra desde a infância. Depois de dez anos cumprindo prazos diários e tirando licenças sabáticas de dois meses, Watterson decidiu acabar com Calvin & Haroldo. Tudo isso no auge de sua popularidade — a exemplo de Pelé em 1977, ou Greta Garbo nos anos 1950.
Graças à popularidade de Calvin & Haroldo, Bill Watterson manteve controle quase total sobre a direção de sua obra. Durante suas licenças sabáticas, os jornais pagavam para publicar tiras antigas, com medo de perder leitores. Quando Watterson anunciou o fim da tira, ele expressou sua opinião de que havia conseguido tudo o que podia no meio. Watterson queria seguir para outros projetos que lhe permitissem trabalhar em seu próprio ritmo e cumprir sua própria visão artística.
Na véspera de Ano Novo de 1995, Calvin e Haroldo partiram bosque nevado adentro, fazendo festa naquele trenó de brinquedo, para continuar suas aventuras apenas na imaginação das pessoas.
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Calvin & Haroldo – coleção completa
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Imagens: reprodução