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Ela para diante da faixa de pedestres e ergue seu bulldog inglês no colo. Aguarda os carros pararem. Do outro lado da rua coloca o bicho no chão e segue, dobra a esquina e eu não a vejo mais. Daqui do sexto andar não é difícil de ver o detalhe da raça do cão e a coleira rosa. Uma fêmea, suponho. Só suponho, por um hábito estúpido e antigo que um tempo atrás veio à tona num discurso careta e antiquado: meninos vestem azul e meninas vestem rosa. Isso nos bebês e nos cães não foi abandonado pelo que vejo de longe por aí. Nada demais.
Acredito que o cão esteja se lixando para a cor da sua coleira. Se fosse azul ou roxa, continuaria a ser coleira e o seu problema é só esse.
Daqui não chutaria a idade da mulher, menos ainda do cão. É uma esquina movimentada e um lado dela abriga duas farmácias e uma loja de pijamas, camisolas e lingeries. Alguma coisa muito urgente se dá nesses tempos em que pipocam farmácias em todas as esquinas. Drogas, analgésicos, antidepressivos, ansiolíticos, dores e antidores.
Na loja de pijamas não tem artigos de sexshop. Já conferi. Duas senhoras comportadas atendem ali. Aliás, as pessoas que atendem em lojas de artigos eróticos são muito comportadas. Tão comportadas que vendem um pênis, um vibrador ou um chicote como quem vende três pãezinhos, um chiclete ou um cigarro. E como devem ser, são especialistas naquilo tudo, falam das variáveis, dos tipos e das opções de tudo, para todo o gosto. Mas ali na esquina as duas senhoras só vendem roupas mesmo, algumas aliás bem pouco eróticas e sim, confortáveis. Uma pegada atual.
Nesta esquina também fica um homem que vende incensos no sinal todos os fins de tarde. Sinto de longe o cheiro quando passo por ali todos os dias depois do trabalho. De vez em quando ele me pede um cigarro e algumas vezes me oferece os incensos. Dou o cigarro e recuso o incenso. Meio que me deixa enjoado aquele cheiro.
Fico me perguntando por que a mulher ergueu o cachorro no colo para atravessar a rua, na faixa e com o sinal fechado para os carros? Deve haver alguma razão, um excesso de zelo talvez. Deve ser isso.
Uma das mulheres da loja de pijamas é psicóloga. Ela me contou. Achei uma mudança curiosa. Deixou a psicologia e abriu uma loja de pijamas, camisolas e lingeries. Ah, pijamas masculinos também tem. Vejo daqui. Acompanho a troca da vitrine, reformada a pouco tempo, bem iluminada. Será que a mulher do cão compra ali?
Bulldog inglês me lembra os Gremlins na forma fofa. Feio igual. É uma questão de gosto. E se você tem uma lesma, uma barata ou um rato de estimação, vai achar qualquer bicho lindo, desde que seja o seu de estimação. Uma vaidade narcísica intocável, que já corro o risco de ser julgado. Bem, eu já tive cães. Adoro cães. Não tenho mais. Essa vaidade narcísica é tão grande em mim que me custava muito deixar o bicho em casa e ir para qualquer lugar. Humanizo demais os bichos, até as formigas. É uma vaidade.
E a vida segue lá fora. O país virado num chiqueiro com esses políticos todos sujos, fascistas por todos os lados, intolerâncias e absurdos, mas segue e a mulher ergue o cão de coleira rosa para atravessar a rua e passa ao lado da loja de pijamas da psicóloga que não vende produtos de sexshop. As farmácias estão ali para a vida seguir frenética, insana, acelerada e burra. Ah, e o que é essa vida?
Olha lá. A moça do cão voltando, parando na frente da vitrine, olhando a camisola rosa ou o conjunto de lingerie, ou o pijama para homem, ou para mulher, ou para os dois. Foi embora. Não entrou, ergueu o cão novamente, atravessou a rua e foi na direção em que o sol se põe. Deve morar por aí.
Logo chega o homem dos incensos. E eu aqui, no sexto andar e na mais tranquila e miserável normalidade.
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